“Considero-me além de qualquer expectativa”, costumava dizer Maura Lopes Cançado. A reedição de seus dois únicos livros – os diários de Hospício é Deus (1965) e a coletânea de contos O sofredor do ver (1968), que estavam fora de catálogo há décadas – abre a discussão sobre até que ponto a escritora e seus admiradores tinham razão em existir (e insistir) na ausência de realidade.
A autora e sua primeira obra
As duas obras foram bem recebidas na época do lançamento. Maura Lopes Cançado, que se dizia “a maior escritora da língua portuguesa” e desfrutava o prestígio de seus pares no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, viveu seu grande momento de exposição. O auge de uma promessa. No entanto, quando ela morreu, em dezembro de 1993, pouco mais de uma dúzia de pessoas compareceu ao enterro. Os livros passaram anos esquecidos, até que o culto ao redor da escritora recomeçou a se erguer, sobretudo nas universidades, que fizeram de Maura uma ponte de estudos sobre “as escritas de si”. Algumas de suas frases, as mais poéticas e selvagens – “Chego à conclusão de que o mal é uma dimensão da minha natureza”, “Sou um anjo com vocação para demônio”, “Existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol” –, pipocaram em sites literários e redes sociais. Os dois volumes que assinara podiam ser comercializados a preços astronômicos nos sebos virtuais: R$ 450,00 um exemplar da primeira edição de Hospício é Deus pela José Alvaro Editor (mas o frete é grátis). Além de acabar com essa farra, a recente e bela caixa da editora Autêntica (ao preço de R$ 74,00) é ótima oportunidade para se pôr alguns pingos nos is.
Hospício é Deus e O sofredor do ver estão fortemente marcados pela experiência da escritora como paciente de hospícios de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Mais: é quase impossível dissociar a obra da vida da autora.
Era uma mulher muito bonita. Nasceu em 27 de janeiro de 1929, na cidade mineira de São Gonçalo do Abaeté. De saúde frágil, a mãe, Dona Santa, fez a promessa de, até os sete anos, só vestir a menina de azul e branco, cores de Nossa Senhora. Maura morria de inveja do chapéu vermelho da irmã mais nova, Selva. Dizia às amiguinhas que era filha de russos e que um seu tio nascera na China. Aos 14 anos quis estudar alemão para ser espiã nazista. O pai, um rico fazendeiro dos tempos da lei do revólver e dos jagunços roseanos, não permitia que se lhe cortassem os cabelo. Era a filha predileta e mimada.
A escritora descreveu a infância como “superangustiada”: tinha pesadelos, medo pânico de morrer, ataques de epilepsia, e, segundo relatou no Hospício é Deus, foi abusada sexualmente três vezes por empregados da família. Casou jovem e virgem, logo engravidou e deu ao bebê o nome de Cesarion, o mesmo do filho de Cleópatra e Júlio César. Mais tarde Maura admitiu que, durante o curto tempo de matrimônio, pensava sexualmente em outro homem, o coronel Praxedes, seu sogro, “maravilhoso, alto, imponente e importante”.
Em abril de 1949 entrou por vontade própria na Casa de Saúde Santa Maria, em Belo Horizonte – a primeira de uma série de internações ao longo da vida. Separada do marido, levava vida boêmia (“era bacana ter amante”), frequentava a noite e bebia bastante, torrando o dinheiro que ganhara de herança. Resolveu morar no Rio, e, antes do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, parou nas páginas de polícia, devido a brigas com um empresário que a sustentava. Tentou o suicídio em 1955. Três anos depois já fazia parte do time do “SDJB”, o caderno cultural de maior influência na época, trabalhando ao lado de Reynaldo Jardim, Mário Faustino, Ferreira Gullar, Assis Brasil, Carlos Heitor Cony, José Carlos Oliveira. Seu conto “No Quadrado de Joana”, sobre uma paciente catatônica, saiu na capa do suplemento – e fez furor.
Hospício é Deus (um título espetacular, convenhamos) é o relato sobre uma de suas internações no Hospital Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, entre o fim de 1959 e o começo de 1960. Exercício terapêutico, a primeira seção é um rápido apanhado biográfico, da infância em Minas até a chegada ao Rio. Em seguida, assume a forma de diários, com entradas marcadas por datas, nas quais a autora mostra habilidade para narrar, costurando as maluquices do sanatório e as denúncias de abuso, com um poderoso “acervo existencial”, para usar a expressão do crítico Assis Brasil.
Gênero da intimidade literária – pouco praticado no Brasil, com raras exceções – escreve-se um diário para dar testemunho de uma época, para confessar o inconfessável, para calibrar a vocação de escritor, para experimentar ousadias, para recobrar a saúde ou para conjurar fantasmas (as duas últimas práticas são as de Maura). Por mais que pareça ficção – e muitos forçam a barra para que seja –, o que lemos em Hospício é Deus se insere na tradição de tratar transtornos mentais com a escrita. Um relato clínico de grande força, mas relato clínico. Nesse aspecto, o livro se assemelha aos de Rodrigo de Souza Leão, morto em 2009, autor de Me roubaram uns dias contados.
Também se escreve um diário íntimo – pense em Kafka, Musil, Pavese, Barthes e no contemporâneo Ricardo Piglia – para ensaiar esquemas e problemas literários, reflexões, teses críticas ou filosóficas, diagramas, citações, fofocas, todo o laboratório de um escritor. Maura apenas epigrafa Sartre, Nietzsche, Faulkner e cita algumas leituras, entre as quais Joyce e Proust (confessa que não consegue lê-lo). De passagem, refere-se a Clarice Lispector, com quem volta e meia é comparada pelo caráter introspectivo da prosa.
Por fim, a autora nega o gênero a que se dedica: “Não é, absolutamente, um diário íntimo. Mas tão apenas o diário de uma hospiciada, sem sentir-se com direito a escrever as enormidades que pensa, suas belezas, suas verdades. Seria verdadeiramente escandaloso meu diário íntimo”.
A coletânea de contos O sofredor do ver evidencia a Maura escritora ainda em formação. (Não à toa, ela procurou Carlos Heitor Cony para que ele lhe ensinasse a escrever um romance. Cony fugiu da raia mas, ao menos, lhe deu de presente uma Olivetti 22 portátil.) A segunda parte do livro, sobretudo os contos “São Gonçalo do Abaeté”, “Pavana”, “A menina que via o vento” e aquele que dá título à coletânea, evita a experiência nos hospícios e se aproxima da verdadeira ficção. “O sofredor do ver” é a escritora que podia ter sido e não foi.
O romance que pretendia fazer não saiu. Ligou-se em zen-budismo, cabala, alquimia, doutrinas secretas e paranormais. Foi morar no Solar da Fossa e namorou o compositor Luís Reis, o Cabeleira, parceiro de Haroldo Barbosa no samba “Devagar com a louça”. Enquanto isso, os surtos psicóticos prosseguiam de maneira cada vez mais perigosa. As internações, com direito a eletrochoques e reclusão em quartos-fortes, caminhavam na mesma batida. Sua definição de hospício era “uma cidade triste de uniformes azuis e jalecos brancos”, por coincidência as cores com que a vestiam na infância.
Em 1972 Maura matou por estrangulamento uma paciente da Clínica de Saúde Doutor Eiras, em Botafogo. Diante do exame de sanidade, a Justiça a considerou inimputável. Numa matéria de O Globo, de 1978, a repórter Margarida Autran a encontrou irregularmente detida no Hospital Penal da Penitenciária Lemos de Brito, vivendo num cubículo imundo e infestado de percevejos. Estava quase cega, desnutrida, os dentes exigindo cuidados: “Estou tensa como as cordas de um violino. Se relaxar, eu morro”.
Maura Lopes Cançado foi vítima – talvez uma das primeiras – do estranho ambiente cultural em que a literatura em si vale menos do que atraentes e intensos acontecimentos literários. É onde estamos hoje: não importam os livros de Karl Ove Knausgard e sim a vida de Karl Ove Knausgard minuciosamente contada.