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Oi, amigo
acabo de ler a série de poemas sobre o corpo. Ainda bem que tenho um pouco de tempo (tempo…) de silêncio em mim depois da sua poesia e antes da próxima sessão. Conheço todos eles, dos respectivos livros. Mas o impacto de ler todos seguidos é grande. Além desse, de que não me lembrava. “Cinquenta e tantos anos”: “Escrevo porque escrevo”… etc. Não, seus poemas não são de um contemplativo. Mas são de alguém que tem tempo livre, sim (mesmo que no meio da casa em movimento), e acho que você só entenderia do que eu estou falando se tivesse a vida de “cartela preenchida” que eu tenho. E não pense que eu considere isso uma vantagem. Tenho tirado férias sozinha, em lugares ermos que você sabe quais são (não vou usar o blog para fazer propaganda, meu sonho é que continuem pelo menos um pouco ermos) e percebo a diferença. Nesse verão escrevi, escrevi, escrevi, por necessidade. Porque o tempo livre abre espaço para a voz interna. Mas na vida que levo em São Paulo, a pulsação é outra. Já te contei que escrevo quase tudo – poemas, cartas, artigos de jornal – na cabeça, em movimento, e depois passo para o papel. Mas a pulsação da cidade, e a minha dentro dela, me provoca outra escrita. As crônicas do Estadão por exemplo, no ano passado, eu escrevia mentalmente, em movimento, e só depois, ao digitar, corrigia e dava a forma final. O tempo da poesia, tempo interno, mesmo, como você diz e sabe, é outro. Tenho quase vergonha de contar a alguém como você, das vezes em que tenho o impulso de escrever algo fora do profissional (artigos, conferências e tal) e, de tão cansada, penso: depois, depois. Claro que, quando chega o tal depois, o momento já não é o mesmo que eu supunha e nem me lembro mais o que motivou meu impulso supostamente poetizante ou poetizador. Fico triste e resignada com a situação. Gostaria de saber o que você acha dessa resignação.
Só pra me consolar, te conto que este ano o ciclo de conferências organizado pelo Adauto (Novaes) é sobre a preguiça, e eu decidi sair completamente da psicanálise e falar sobre “A preguiça no samba”. Se te interessar – não o ciclo todo, mas o que vou falar lá -, te conto um pouco. Não conheço um samba que inclua a palavra preguiça propriamente. O clássico “Samba e amor”, do Chico, por exemplo, fala de muito sono de manhã, mas não menciona a preguiça que é o tema óbvio dele. A preguiça, ou seja, o avesso da disposição para o trabalho, vai aí como condição de se fazer samba (e amor…) noite adentro enquanto a cidade alarde do lado de fora. Como se isso não fosse trabalho! Na tradição do samba, que vem lá do finalzinho do século XIX e começo do XX, a preguiça se chama orgia, boemia, malandragem, vadiagem. “Eu digo e serei capaz/ de não resistir/ nem é bom falar/ se a orgia se acabar” (Ismael Silva). “A malandragem eu não posso deixar/ juro por Deus, e por nossa senhora/ que é mais fácil ela me abandonar, meu Deus do céu, que maldita hora” (Sinhô).
Fui ler o comentário de nosso querido Antonio Candido sobre as Memórias de um sargento de milícias, que tem como protagonista a figura do malandro, cercado da gente miúda que, excluída do parco universo do trabalho formal no Rio oitocentista (e escravagista), vivem na “viração”. Li o Nabuco, para entender quanto a escravidão desmoralizou o trabalho livre, não só entre os negros libertos, já explorados à exaustão, mas também entre os brancos pobres. “Branco não carrega pacote”, dizia à menina Helena Morley uma das tias pedantes, na Diamantina pós-escravidão. O trabalho pesado continuou a pesar nos ombros dos negros, os mesmos que trouxeram o samba, os mesmos que, quando podiam escolher, fugiam da labuta para a orgia. Porque “ninguém entende como é que dói” a tal labuta daqueles que têm que “trabalhar em Madureira, viajar na Cantareira e morar em Niterói” (Gordurinha).
Eu, que não sou preguiçosa mas sou apressada (e às vezes considero a pressa uma espécie disfarçada de preguiça, pois faço as coisas correndo só pra ver se me livro logo delas…só que quanto mais depressa eu trabalho, mais trabalho me aparece), quero fazer um elogio sincero do ócio criativo e de sua expressão no samba, esse gênero indissociável do caldeirão de mitos que é o seu, o nosso, Rio de Janeiro. Quando vou ao Rio, principalmente ao caminhar pelas regiões que os cariocas do Leblon chamam de “Rio ruim”, respiro um pouco do que restou do ar que respiraram Cartola, Donga, Sinhô, Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Wilson Batista. Sem contar, é claro, Noel Rosa, “Sinhô de pele mais clara/ em qual Sinhô encarnara/ a alma sonora do samba”. (Silvio Caldas)
E só pra não me sentir tão resignada com a falta de tempo para a poesia, te mando duas das que você mesmo chamou de “suíte do Rio” – está vendo?, no Rio, onde fico flanêur como Baudelaire, ainda me acontece de criar um poema ou outro. Aí vão, com um beijo, Rita.
Ponte aérea Guanabara
A cidade só não rói o que é de pedra A tarde recolhe os restos
o resto é uma inflamação do dia que não enxerga
presas no fundo da rede
trepa pelas escarpas tímidas lascas de prata
contamina cursos d’água: inúteis para o repasto
febre de quarenta graus.
Do outro lado o oceano passa a vida feito cega
bicho bom ao esplendor dos contrastes
não se cansa de lamber as bordas da ferida. tudo sobra tudo excede
tudo finda antes do prazo.