Margem de imprecisão

Colunistas

17.08.16

Diego Velázquez fez uma revolução na pintura ocidental no século XVII, na mais completa discrição, sem precisar alardear coisa alguma e sem praticamente arredar o pé da corte. Quem explica é o filósofo e ensaísta espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) em Velázquez, um livrinho deslumbrante que reúne seus ensaios sobre o pintor sevilhano e que saiu há pouco pela Martins Fontes, com organização e tradução de Célia Euvaldo.

Velázquez pôs a própria pintura no lugar da representação, e isso não apenas por meio do dispositivo alegórico de Las meninas, seu quadro mais célebre, que Michel Foucault analisou na introdução de As palavras e as coisas. Toda a obra de Velázquez é, como mostra Ortega y Gasset, um movimento discreto no qual a pintura deixa de ser representação da beleza para “se fazer substância”, para se apresentar afinal como pintura (“pintura enquanto pintura”), condição da modernidade.

Esse comedimento reflexivo, entretanto, se tornou estranho entre nós. Quem entende o valor da discrição hoje? Vivemos o tempo do narcisismo e do exibicionismo desembestados. Só se fala de si. Não cansamos de nos exibir e de nos promover, demasiado cegos e vorazes para sentir vergonha ou refletir sobre o ridículo da vaidade exposta em praça pública. Com Velázquez, o retrato, antes considerado um gênero menor, passa a primeiro plano, torna-se central para a pintura. Mas a individualização que daí decorre tem como objetivo mostrar as coisas como elas são, contrariando a idealização do mundo e o desejo humano de beleza. Nada a ver com o nosso individualismo narcisista, idealização patológica de si. A feiura, assim como a discrição, tem um papel singular na obra de Velázquez.

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Contemporâneo de Descartes, o pintor espanhol usava o retrato como um dispositivo realista e reflexivo contra a abstração e a generalização mitológica das representações religiosas, mas também contra o formalismo e o barroquismo que procuravam embelezar e edulcorar o mundo. Ao mesmo tempo que radicalizava a individualização do objeto retratado, o pintor eternizava o instante da cena, como na fotografia, em quadros que muitas vezes foram considerados inacabados. O retrato era o contrário do ideal abstrato e genérico da “Beleza”, coincidia com uma “ânsia de prosa” contra o formalismo poético.

O jovem Velázquez foi chamado à corte de Filipe IV por sua fama de retratista em Sevilha. O novo rei precisava ser retratado. As circunstâncias permitiram que o pintor contasse com a feiura do rei e da família real, num palácio habitado por uma fauna “predominantemente monstruosa”, para transferir o foco de atenção da idealização da beleza dos objetos representados para a própria pintura: “A miséria do personagem obrigava a atentar para a pintura”.

“Uma vez que seu destino como artista foi pintar o que tinha diante de si, Velázquez pintou o que havia de mais essencial no palácio: a família real e o tropel de monstros que vagavam a todo momento pelas galerias e aposentos.” Como outros palácios europeus, o Alcázar madrileno estava cheio de anões, loucos e bufões. “A maior parte desses monstrengos e infelizes não tinha ocupação determinada e é certo que com muita frequência se infiltrava no estúdio de Velázquez. Para o pintor, eles representavam o modelo ideal. Ao retratá-los, podia dar livre curso a seus ensaios de técnica pictórica, e por isso são, nesse sentido, o melhor de toda sua obra”.

Os monstros e os feios representavam o valor dramático da simples existência, comum a todos, sem distinção, ao contrário dos valores convencionais da beleza, da força e da riqueza. A individualização, nesse caso, universalizava não mais por abstração e idealização, mas pelo que Ortega y Gasset define como um “logaritmo de realidade”.

À diferença do mito, a realidade é imperfeita. Velázquez foi acusado de “pintar por borrões” quadros que muitas vezes pareciam inacabados. Sua pincelada, precursora do Impressionismo, faz sobressair a pintura em sua opacidade, contra a irrealidade transparente das representações. “O ‘naturalismo’ de Velázquez consiste em não querer que as coisas sejam mais do que são, em renunciar a lhes dar relevo e aperfeiçoá-las; em suma, a precisá-las”.

O mundo é impreciso, a precisão é fruto da necessidade humana de idealização. A “margem de imprecisão” é o verdadeiro ser das coisas. “Tal é o paradoxo formidável que irrompe na mente de Velázquez (…). As coisas em sua realidade são mais e menos, são apenas aproximadamente elas mesmas, não terminam num perfil rigoroso, não têm superfícies inequívocas e polidas. (…) A precisão das coisas é precisamente o irreal, o lendário nelas.”

De lá para cá, agarrados à idealização de uma individualização narcisista, à crença nessa irrealidade cada vez mais infantilizada, disseminada por mídias sociais e afins, vamos nos acostumando a imposturas baratas e preconceitos para explicar o mundo, tentando virar a cara para tudo o que é imprecisão ao redor de nós e que contradiz a patética autoimagem dos nossos pobres contornos e perfis.

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