A bandeira da Síria em seu perfil

Vida Contemporânea

05.04.18

 

Competição de tragédias

Há dois anos e meio, mais especificamente no dia 12 de novembro de 2015, dois homens-bomba atacaram um subúrbio de Beirute, no Líbano, causando a morte de quarenta pessoas. O atentado, como muitos outros no Oriente Médio, comoveu pouco o Ocidente. Um dia depois, no entanto, o planeta ficaria de luto pelas 130 fatalidades de um ataque conjunto em Paris. Algumas horas mais tarde, um filtro do Facebook permitia ao usuário colocar a bandeira da França sobre sua foto de perfil, assim como meses antes fora possível com a bandeira LGBT, e depois seria com a luta contra a cultura do estupro.

Imediatamente, uma legião de brasileiros compartilhou sua ira contra quem assim manifestou o sentimento pelas vítimas da tragédia, alegando ser mais importante nos lamentar pelo rompimento da barragem em Mariana, ocorrido uma semana antes. De acordo com eles, chorar pela França seria apenas mais uma maneira de demonstrar nosso colonialismo. Na Bahia, à sombra das duas tragédias mais comentadas, um prolongado incêndio que devastava o seu mais importante parque natural, a Chapada Diamantina, passou praticamente despercebido pela mídia nacional. Algumas pessoas reagiram de modo semelhante, e reclamaram da subserviência nordestina ao Sudeste.

 

Oração secular

A postagem e o compartilhamento são uma espécie de oração secular, passível de coexistirem com a oração religiosa, mas feitas para um deus-algoritmo que só existe para o usuário de redes sociais em sua própria timeline: um deus cuja concretude pode ser vista no feedback, na divulgação, na reputação. Pragmaticamente, é inócuo; compartilhar uma mensagem em solidariedade às vítimas de Aleppo é tão eficaz quanto rezar por eles; reclamar com os homens que se fantasiam de mulher no carnaval pouco influi na violência de gênero; alterar o sobrenome no perfil para “Guarani-Kaiowá” talvez tenha servido para algumas pessoas dormirem melhor, nenhuma delas um indígena no Mato Grosso do Sul.

Obviamente, não há nenhum problema em postar o sentimento de compaixão e solidariedade; certamente é melhor que mensagens de ódio, notícias falsas, intimidades alheias ou fotos de mutilações. O problema está em transformar a causa em profissão de fé, numa paráfrase virtual das guerras entre religiões que alegam difundir o amor e salvar os seguidores; o problema está em transmitir essa compaixão com superioridade, em fiscalizar o luto dos outros, em conceder cliques como quem assina manifestos; em destilar fel contra quem colocou a bandeira da França, mas não a da Síria, na foto do perfil; em manifestar essa irritação com mesmo o fervor com que antes publicava mensagens de paz. Algumas causas são mais urgentes que outras, mas a irrelevância dos resmungos é equiparável.

 

Empanzinamento mental

Vivemos empanzinados de informação; em tempos de acesso ilimitado e imediato, existe, em cada um de nós, uma espécie de lacuna cultural, uma busca desesperada por saciedade, que paradoxalmente parece se dilatar, em vez de diminuir, quanto mais é consumido. Por mais que nos esforcemos para ler, assistir, escutar, conhecer, fazer, resta sempre uma frustração ao descobrirmos que nos falta a referência para compreender certa piada, ao encontrarmos uma lista repleta de itens dos quais nunca ouvimos falar, ao não desfrutarmos de produtos adquiridos instantaneamente. A oferta é maior que nossa capacidade de consumir, o que resulta em ansiedade, a “vertigem das listas” de Umberto Eco.

Essa ansiedade não fica restrita aos prazeres intelectuais, mas se expande aos relacionamentos (a certeza intuitiva de que, por mais agradável que seja a nossa companhia, sempre existe alguém mais interessante), à carreira (a incapacidade de se alegrar por muito tempo com alguma conquista), à tecnologia (a necessidade de trocar os nossos produtos a cada lançamento de um novo modelo). Expande-se também para nossa relação com a sociedade, traduzida numa culpa íntima por sofremos demais com nossas trivialidades e nunca fazermos muita coisa pelo mundo brutal do outro lado das nossas janelas.

Levada para a internet, e replicada de modo descontrolado e sem qualquer curadoria possível, essa frustração gera um caótico excesso de causas: batalha-se com o mesmo empenho a favor ou contra políticos, letras de funk, fake news, ketchup na pizza, uma propaganda de Tom Zé, amamentação em lugares públicos, séries da Netflix, fantasias de carnaval, Marielle Franco, as cores de um vestido azul e preto, os direitos dos animais de abate, performances artísticas, modos de falar, pelos pubianos numa revista de nudez, a própria militância virtual, a ausência da bandeira da Síria no perfil alheio.

Apontar esse excesso não quer dizer que devamos nos satisfazer com o que temos, fazemos e somos, e cedermos de vez à rotina e à letargia; mas sim que devemos fazer algumas escolhas, ou no mínimo descartar o possível dessa lista incontrolável. Uma luta específica, em si, não atrapalha as outras; porém esse caos de causas acaba por nos empanzinar, assim como o excesso de opções culturais, gerando um cansaço que a longo prazo dilui as batalhas mais urgentes e de interesse mais amplo. E neste momento é preciso eleger prioridades, pois estamos em guerra.

 

 

Uma guerra indistinta da paz

Uma das ilusões da ficção especulativa é imaginar que a Segunda Guerra Mundial poderia ser evitada caso Hitler tivesse morrido antes de seu início. No entanto, assim como a morte de um chefe do tráfico sequer estremece as estruturas do crime organizado, se Hitler não entrasse para a história como o facínora nazista, provavelmente outra pessoa entraria em seu lugar; como visto no filme A fita branca, dirigido por Michael Haneke, ou no quadrinho O complô, de Will Eisner, a semente do nazismo havia sido plantada décadas antes. No Brasil, por sua vez, nossa guerra pouco se alteraria com Temer fora do cenário. Um político corrupto é ainda mais fácil de substituir que um líder nazista ou um chefe do tráfico. E, além de inevitável, é uma guerra diferente das que conhecemos pela mídia e pelos livros de História.

“É uma guerra aberta, embora denegada”, explica o filósofo Peter Pál Pelbart, no ensaio Estamos em guerra, “é uma guerra sem trégua e sem regra, ilimitada, embora queiram nos fazer acreditar que tudo está sob a mais estrita e pacífica normalidade institucional, social, jurídica, econômica.” Uma guerra difícil de se lutar, posto que acontece numa zona cinzenta, sem inimigos uniformizados, sem um campo de batalha delimitado, indistinta do cotidiano. “Guerra e paz se tornam sinônimos, assim como exceção e normalidade, golpe e governabilidade, neoliberalismo e guerra civil”.

Porém, como vimos nas últimas semanas, o Brasil parece consultar num manual de instruções o passo a passo para a guerra aberta e sangrenta. De acordo com o historiador Mark Bray, “o fascismo não precisou derrubar portões para ganhar acesso aos centros do poder. Bastou con­vencer os porteiros a deixá-lo entrar”. No Brasil foram os porteiros que convidaram para o festim os passantes distraídos na calçada. E as pessoas que hoje se revelam sedentas de sangue são as mesmas que ontem se perguntavam como uma coisa horrível como o nazismo pode ter acontecido; amanhã, no entanto, tentarão esconder a própria barbárie.

Por outro lado, embora nossa guerra seja irreversível, enquanto não chegarmos às armas talvez ela não seja irrefreável. Qualquer um que tenha assistido a última temporada de Game of Thrones – em que a paz é indistinta da guerra –, sabe que alianças incômodas precisam ser feitas em nome da possibilidade de se lutar contra o mal maior. Ainda que haja uma grande massa movida por fanatismo, hipocrisia e maldade, existe uma fatia que está ali por insegurança, decepção ou desinformação, sem uma luta tão definida. Por isso, grupos de resistência heterogêneos devem suspender suas dissonâncias em nome do combate à malícia, à intolerância, à violência, ao monstro cujo pé que pretende nos esmagar, junto com todas as nossas convicções, já faz sombra sobre nós. Mas, para que tenhamos uma mínima chance nesta guerra, além de saber ceder, precisamos escolher melhor as causas pelas quais lutar.

 

Hierarquia das motivações

Se os problemas do Brasil perpassam cinco séculos, é incoerente atribuí-los às redes sociais. Apesar de todas as maquinações específicas à internet, antes existia apenas a mídia tradicional, como a televisão, e sua informação unidirecional; e antes disso apenas a mídia impressa, restrita aos alfabetizados (num país ainda mais iletrado); e antes da imprensa, o discurso falado das próprias autoridades. As redes sociais, como qualquer outra arma, podem ser usadas para atacar e para defender (como já sabem disso, fomos cobaias de experimentos de censura institucional com justificativas tão ralas quanto as pedaladas fiscais).

Nessa Babel de causas, podemos definir certa hierarquia das motivações: a expressão, a reclamação, o debate, o plano de ação. No caso do incêndio da Chapada Diamantina, mencionado acima, houve quem apenas manifestasse seu luto, quem acusasse adversários, quem fizesse politicagem, mas também houve muitos voluntários, desconhecidos entre si, que se organizaram para ajudar, in loco e a distância, os bombeiros que tentavam aplacar as chamas. Mas nesse caso é bem mais simples angariar apoiadores; embora no Brasil se relativize assassinatos, nem mesmo o mais ignorante dos latifundiários consegue vislumbrar os benefícios de um incêndio em belas montanhas de pedra.

No geral as lutas são mais cinzentas, e escolher entre elas é mais difícil. É preciso ter em mente que muitas das causas sequer existirão se outras, mais elementares, não forem defendidas. Na fome, os animais são comida; o direito de ir e vir importa mais que as ciclovias; se o direito de falar está ameaçado, não faz sentido debater os preconceitos da língua. Na dúvida, imagine que agora você possa efetivar uma de suas causas, apenas uma. Pergunte-se: na iminência da batalha, quais delas poderiam ser adiadas? Todas lhe parecem importantes, porém quais são as mais urgentes? Enquanto eles estancam a sangria, precisamos manter nosso coração batendo antes de tentar cuidar do resto do corpo.

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