Três filmes entre a natureza e a natureza do cinema

Cinema

21.05.14

Cannes. Se observamos apenas a história narrada no novo filme de Naomi Kawase, Futastsume no mado (Still the water, ou, em tradução direta do original japonês, A segunda janela), vemos como dois adolescentes aprendem a viver no mundo adulto. A história tem algo de um tradicional romance de formação. A ação se passa numa aldeia da ilha de Amami, situada no sul do Japão, entre Kyushu e Okinawa, onde “as pessoas veneram a natureza como uma divindade. Pensam que um deus vive em cada árvore, em cada pedra, em cada planta. E como se julgam protegidos pela natureza, procuram viver em harmonia com ela”, esclarece a diretora.

Nesse tanto de romance de formação que contém, o filme acompanha Kaiko (os pais separados, ele vive com a mãe) e Kyoko (ela e o pai preocupados com a doença e provável morte da mãe em breve). O aprendizado se dá entre a morte de um desconhecido por afogamento e os ciúmes do filho com os amantes da mãe. Entre a paixão de Kyoko pelo mar e o medo de Kaiko diante do mar. Entre a visita do filho ao pai, em Tóquio, e as conversas da filha com a mãe. Entre os jovens que começam e não começam um namoro, a presença e os conselhos serenos do velho pescador Kamejiro (o “papai tartaruga”). Nas palavras da diretora, o filme nos conta “como dois jovens aprendem a aceitar os outros, a tomar consciência do mundo que nos rodeia, a guardar na memória a experiência de vida das gerações passadas”.

Mas, se observamos também o modo de narrar e não nos esquecemos dos impulsos que levaram a diretora a realizar o filme (é seu oitavo longa-metragem de ficção e o primeiro que ela filma fora de sua cidade natal, Nara), Futastsume no mado se revela mais próximo de um ensaio cinematográfico que de um romance de formação. “O tema central é o assassinato dos deuses. Os deuses da natureza venerados em Amami, o mar, as montanhas, as plantas, deuses silenciosos que podem ser facilmente mortos em nome de um assim chamado desenvolvimento”. Isso está no que os personagens dizem e fazem, na paisagem de Amami, as árvores, as montanhas, a paisagem do fundo do mar, o vento na vegetação, as grandes ondas que quebram na praia, o mar, sobretudo o mar, “a natureza com toda sua energia protetora, outras vezes, destrutiva, outras, basta lembrar o tsunami em Fukushima, e em toda a sua beleza, para não perder a consciência do mundo que nos rodeia”.

Esse tanto de filme-ensaio colado na história do aprendizado de dois adolescentes conduz o espectador a uma segunda espécie de romance de formação, um outro aprendizado, transmitido pela gente de Amami: “Não estamos no centro de todas as coisas, somos uma parte do ciclo da natureza”. A diretora destaca o que pensa a gente da ilha: “Para eles a fronteira entre a vida e a morte não está claramente marcada. As pessoas não choram a morte de um ente querido, veem isso como uma separação temporária no fluxo do tempo. A alma continuará a viver feliz e sorridente no país de Neriyakanaya”. Por isso mesmo, no filme, o papai tartaruga explica para os jovens que as pessoas na verdade não morrem, apenas retornam para a casa em que nasceram.

Outro impulso para a realização desse filme veio desse sentimento esquecido da vida como um fluxo, uma continuidade transmitida de uma geração a outra, que ela experimentou com a morte da mãe e a primeira visita à ilha de Amami, onde nasceram sua avó e sua mãe, mas que até recentemente ela não conhecia. Nessa primeira visita, estava grávida, e essa sensação de que voltava às suas origens e logo transmitiria ao filho que ia nascer o recebido da avó e da mãe foi a imagem primeira, não formulada então com clareza, do filme que ela iria fazer – obra que, ao contrário do que qualquer tentativa de análise pode sugerir, é mais sentimento que razão, delicadeza e afetividade espontânea que construção rigorosa. Muito do filme foi improvisado nos locais de filmagem, por vontade própria da realizadora e por intervenção da natureza, pois durante as filmagens, em outubro do ano passado, ao contrário das previsões, um tufão provocou ondas enormes em Amami e passou a fazer parte da história de Kaito e Kyoko.

Pelo menos outro filme na competição do festival mostrou, e com especial sensibilidade, um romance de formação, o italiano Le Meraviglie (As maravilhas) de Alice Rohrwacher. Os dois adolescentes são Gelsomina, filha de uma família de apicultores da Toscana, e Martin, jovem delinquente alemão acolhido pela família por intermédio de um programa oficial de resinserção na sociedade. E também aqui, nesse filme de estilo próximo dos relatos sussurrados, entre o documentário e a ficção, e voltado para o mundo do trabalho, de Ermanno Olmi, também aqui uma defesa de um modo de viver em harmonia com a natureza, a familia de apicultores em luta contra os produtos industriais que envenenavam as abelhas e contra a modernização do lugar, com a construção de um centro turístico.

E pelo menos outro filme da mostra competitiva documentou a natureza com idêntica paixão, o turco Kis Uykusu (Sonho de inverno), de Nuri Bilge Ceylan, a paisagem aqui (feita só de pedra e neve) quase como um retrato do personagem central, um ex-ator que dirige um hotel de turismo ao lado da irmã, separada do marido, e da mulher, bem mais jovem que ele e dedicada a trabalhos de assistência social no vilarejo próximo.

Uma cena especial revela certa herança do neorrealismo em Rohrwacher – a atriz que vive Gelsomina é de uma família de apicultores, e assim as cenas em que aparece no trabalho com as abelhas, sem perder o sentido dramático, parece fragmento de um documentário. Uma cena em especial revela uma herança da tragédia em Ceylan: a conversa entre o ex-ator e sua irmã, através de questões banais, de pequenas coisas do cotidiano, cresce em tensão e dramaticidade e chega à beira de uma explosão, ou implosão dos personagens.

Mas nesses filmes na fronteira entre a natureza e a natureza outra do cinema, o melhor instante do festival, até agora, é a cena da morte da mãe de Kyoko no filme de Kawase, com os vizinhos, o pai e a filha cantando uma canção triste, de despedida, a pedido da mãe, e dançando seguida o alegre bailado de agosto. Quem tiver na memória a sequência final do Sonhos de Akira Kurosawa pode chegar perto da construção poética dessa cena do filme de Kawase. Mas mesmo esse perto está bem distante da real emoção e delicadeza desse momento de Futatsume no mado.

José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.

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