Poesia convulsiva

No cinema

20.05.16

O cinema japonês tem pelo menos três gênios incontestes: Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu e Akira Kurosawa. São inteiramente distintos e complementares. Numa simplificação grosseira poderíamos dizer que o tom predominante de Kurosawa é o épico; o de Ozu, o lírico; o de Mizoguchi, o dramático.

Uma preciosa caixa de DVDs da Versátil que está chegando às lojas (e às poucas locadoras que resistem) permite conhecer melhor a esplendorosa filmografia de Mizoguchi (1898-1956).

São seis títulos fundamentais das décadas de 1930 e 50, entre eles duas obras-primas absolutas, Crisântemos tardios (1939) e O intendente Sansho (1954), frequentemente citados nas listas de “melhores de todos os tempos”. Os outros quatro da caixa – Elegia de Osaka, Os músicos de Gion, A mulher infame e Rua da vergonha – são não menos que extraordinários.

Eles se juntam aos cinco títulos lançados numa caixa anterior da mesma distribuidora, com clássicos como Contos da lua vaga, Oharu e Os amantes crucificados, e o conjunto vale por uma retrospectiva Mizoguchi, enriquecida, nos extras, pelos comentários entusiásticos do crítico Sérgio Alpendre.

Contrastes humanos

Muito já foi dito sobre Mizoguchi e ainda haveria muito a dizer, mas vou me limitar a algumas breves observações. A primeira é de que seu mundo é o das paixões, dos sentimentos em convulsão, dos contrastes humanos violentos, num espectro que vai do melodrama pessoal à tragédia social. Diferentemente da placidez contemplativa de Ozu, que parece amortecer sábia e serenamente os mais dolorosos conflitos, em Mizoguchi tudo parece estar à flor da pele, prestes a explodir – mesmo que a explosão seja muitas vezes interior ou, mais propriamente, implosão.

Também à diferença de Ozu, que em geral retrata cidadãos e famílias comuns, integrados à ordem social, Mizoguchi se interessa pelos seres à margem: artistas, contraventores, párias, prostitutas. Seu olhar ao mesmo tempo inquieto e compassivo dirige-se sobretudo aos sofrimentos da mulher – da mulher em geral, mas em especial da mulher japonesa, milenarmente oprimida e reprimida. Não por acaso, há na caixa recém-lançada três histórias de gueixas e prostitutas (Os músicos de Gion, A mulher infame e Rua da vergonha, seu último filme), e mulheres ultrajadas estão presentes também nos outros três títulos.

Há quem associe essa obsessão temática, de modo um tanto redutor, a circunstâncias biográficas: filho de um carpinteiro de Tóquio, o cineasta viu uma irmã adolescente ser vendida como gueixa a um homem rico. O fato é que a dor da mulher está no centro do seu cinema.

Dos seis filmes lançados agora, apenas um não tem ambientação contemporânea: o monumental O intendente Sansho, situado no Japão do século 11. É a saga de uma família destroçada quando um governador que tem compaixão por seu povo é forçado ao exílio pelo poderoso senhor feudal da região. Separados da mãe, os filhos do governador, o menino Zushiô (Yoshiaki Hanayagi) e sua irmãzinha Anju (Kiôko Kagawa), são vendidos como escravos a um senhor despótico, o intendente Sansho (Eitarô Shindô), cuja propriedade mais parece um campo de concentração. Eles crescem e tornam-se adultos naquela usina de crueldades, prometendo a si mesmos fugir um dia em busca dos pais.

No fôlego amplo dessa narrativa que atravessa décadas haveria material para toda uma série, mas Mizoguchi consegue a proeza de concentrar tudo em duas horas da mais pura e pungente poesia cinematográfica, em que a transformação interna dos personagens tem tanta importância quanto seus embates com o mundo adverso que os cerca.

Obra de plena maturidade, ali o diretor exibe seu amplo domínio do plano longo, com profundidade de campo e uma porção de ações acontecendo ao mesmo tempo, sem que com isso se perca o foco dramático e a clareza de exposição. Mostra também sua maestria no uso das elipses, não apenas temporais, mas também espaciais, sobretudo nas cenas de extrema violência ou horror.

Afeto extraviado

No mais, essas obras reafirmam Mizoguchi como um grande cineasta de histórias de amor, mas não do amor romântico idealizado, e sim do afeto extraviado, mal compreendido ou rechaçado, seja por seu destinatário (como em Elegia de Osaka, em que uma jovem se torna amante do chefe para sustentar a família que acaba por rejeitá-la e humilhá-la) ou pelas convenções sociais circundantes (como em Crisântemos tardios, em que uma criada ajuda o jovem patrão a tornar-se um ator respeitado e, quando isso acontece, não encontra espaço em seu mundo).

As histórias de gueixas, além de traçar a trajetória de decadência dessa categoria social ao longo das décadas, como destaca o crítico Sérgio Alpendre, empreendem um exame contínuo e exemplar das tensas relações entre os sentimentos e a ordem social, entre a necessidade material e o desejo, numa sociedade em que a corda sempre estoura do lado da mulher. São comoventes as oscilações dos estados de alma dessas mulheres vítimas – e às vezes praticantes – das piores maldades humanas. Tudo isso exposto por uma câmera que sempre está num lugar privilegiado para captar as nuances mais sutis e a convivência incômoda de forças contraditórias.

Tenso, pulsante, imprevisível, o universo de Mizoguchi é tudo menos plácido. Longe de ser cruel ou indiferente, é um cinema que expõe como poucos a perversa máquina do mundo.

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