A lei do mercado

Colunistas

15.09.15

O português Miguel Gomes (consagrado com Tabu, no Festival de Berlim, em 2012) nunca se pautou por demandas de mercado para realizar seus filmes. O mais recente (As Mil e Uma Noites, 2015), dividido em três “volumes” de duas horas cada, não deixa dúvida quanto à oposição entre tais demandas e a criação artística. O filme é ao mesmo tempo um exemplo e uma provocação, já que seu tema é a crise econômica que se abateu sobre os mercados europeus a partir de 2012, com consequências especialmente trágicas para países como Portugal.

Em cartaz em Paris, As Mil e Uma Noites estreou no Festival de Cannes, na seleção não competitiva da Quinzena dos Realizadores, cuja abrangência permite abrigar projetos por vezes demasiado radicais para a competição oficial. Há duas semanas, o segundo “volume” – a melhor das três partes do filme – foi escolhido para representar Portugal no Oscar.

Gomes concebeu As Mil e Uma Noites com base em histórias e personagens reais compilados por jornalistas ao longo de 2013-14. Como o filme repete a cada novo “volume”, não se trata de uma adaptação, mas de uma apropriação da estrutura narrativa do clássico da literatura árabe para contar o presente. Ainda há uma Xerazade e um rei que ela precisa seduzir todas as noites com suas histórias para não ser assassinada como as esposas que a precederam, mas os contos agora se passam em aldeias e nos conjuntos habitacionais das periferias das cidades portuguesas.

Há reuniões com o FMI e o Banco Europeu, demissões, protestos, desemprego, depressão e miséria, mas há sobretudo um humor desconcertante e fleumático, já típico do melhor cinema português, que combina o deliberado com o involuntário e a ficção com o documental, servindo-se do que pode haver ao mesmo tempo de mais canhestro e de mais singelo nessa sociedade, para reforçar uma ambiguidade irônica que já tinha garantido a graça de Aquele Querido Mês de Agosto (2008).

O anacronismo da combinação entre mitologia e atualidade da crise econômica, com a apropriação escrachada de uma atmosfera mítica, resulta nos momentos mais divertidos de As Mil e Uma Noites. É como se o Glauber Rocha de A Idade da Terra tivesse se encontrado com Pedro Almodóvar para realizar um filme a quatro mãos. E é difícil para os cinéfilos brasileiros não pensar, em parte pelo escracho mas também pela liberdade narrativa e pela livre-associação de ideias, no melhor de Rogério Sganzerla e de Júlio Bressane.

Cena de As Mil e Uma Noites: Volume 1 (2015), de Miguel Gomes

A estrutura de histórias dentro de histórias atinge seu momento de obra-prima durante o segundo “volume”, no chamado episódio das “Lágrimas da Juíza”. Num anfiteatro antigo ao ar livre, uma juíza preside um tribunal de pequenas causas. São móveis roubados por inquilinos, vacas assassinadas por vizinhos etc. O processo tem início com um proprietário que acusa os inquilinos de roubo, antes de ele mesmo ser acusado. Uma acusação leva a outra. Uma confissão leva a outra. Os braços vão se levantando entre o público, conforme novas informações, novas vozes e novos pontos de vista vêm se acrescentar e se contradizer, de modo que a história, assim como o crime e a culpa (e de certa maneira, a própria crise), passa a ser uma produção e uma criação coletivas. No final, a juíza está em lágrimas.

É no pior da crise que Miguel Gomes resolve fazer esse filme radical, sem concessões ao gosto ou às expectativas do público. Há uma lição a tirar daí. É quando já não é preciso prestar contas à hipocrisia dos bem-pensantes, que condenam o que lhes parece demasiado radical ou incompreensível, acusando os artistas de se servir do dinheiro público para abusar do gosto do espectador, que se tem mais chances de realizar aquilo que os netos desses mesmos fariseus acabarão chamando de clássico.

As Mil e Uma Noites fala de gente que não tem trabalho nem o que comer – e que por isso mesmo está paralisada, sem ação, inerte. É um filme estranho, híbrido, excessivo, irregular, às vezes engraçadíssimo, às vezes triste, às vezes longo demais. Mas é a melhor resposta à crise e aos lugares-comuns disfarçados de bom senso. Afinal, os filmes que gozam da simpatia do mercado (e que correspondem às suas convenções) são também os que menos precisam de financiamento público. Ao contrário dos personagens que já não têm forças para reagir, As Mil e Uma Noites se inspira na narradora heroica, que continua contando histórias não só para sobreviver pessoalmente, mas para salvar o reino da sanha assassina do rei. É um filme indignado, que se recusa a se resignar a preceitos que, sob o pretexto de remediar o inevitável, convidam ao suicídio.

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