Por que é que a gente tem essa mania de querer conhecer pessoalmente ídolos, influências, inspirações? Não basta a leitura, o que dizem nos livros? O que se tira desses encontros? Há quem ache que o risco é só se tirar mesmo a aura. É o caso do crítico inglês George Steiner. Na edição de outubro de 2011 da Revista Ler, que promoveu o seu encontro com Lobo Antunes, ele diz temer esses momentos, as frustrações possíveis. Descobrir que o gigantesco escritor não é grande pessoa. É como se nosso contato com autores fosse que nem relacionamentos virtuais: lê o melhor do cara, o que burilou, editou (e foi editado) e nos seduz. Mas propomos um encontro. E aí? E se, ao vivo, percebermos que as ideias, o humor preciso e a sensibilidade vieram numa mala? Ou pior: se ele não tiver nada a acrescentar? Olha, até hoje me acho um cara de sorte: resolvi gostar de autores que, encontrados ao vivo, como Luis Fernando Verissimo ou Amílcar Bettega, valeram a pena. O escritor não diminuiu o livro. Nem o livro diminuiu o autor.
Tudo isso porque, há um ano, decidi estudar em Portugal. Então me inscrevi em dois processos seletivos da Universidade Nova de Lisboa (Pós-graduação em Artes da Escrita e Mestrado em Estudos Portugueses). Se aprovado, não sabia qual fazer. Mas, depois de inscrito, enviei um e-mail para o coordenador da Pós, para esclarecer dúvidas. Na resposta, quase no fim, quase um P.S., ele me disse “reforço de peso no curso. Gonçalo M. Tavares dará aulas na Pós”. Ganha um pastel de nata quem adivinhar o curso que eu escolhi.
Buenas, se encontrar o escritor para um papo, um café, já é risco de, além de gaguejar e passar vergonha, descobrir que o sujeito só é o cara no papel, diz aí: e estudar com ele? Me pergunto o que, de fato, gente como eu espera da cadeira Arte do Romance com Gonçalo M. Tavares? Aprender a arte de criar Jerusalém, Aprender a Rezar na Era da Técnica, Uma Viagem a Índia? Se a expectativa é essa (na primeira aula, pelos olhos de alguns colegas, parecia ser por aí mesmo), má notícia: se depender de mim e das aulas, não surgirá um Gonçalo M. Tavares brasileiro. O que, na verdade, é ótima notícia. É que vejo no Gonçalo um autor que passa ao largo de gêneros. Foge ou bem dá bola para moldes e regras. E por isso, à medida que a primeira aula se avizinhava, eu ficava reticente: que diacho vai ser a arte do romance? Se o Gonçalo vier com macetes e truques, rapaz, cai o Muro de Berlim. Não é ele. E, além do mais, se tivesse modelo para escrever como ele, se todos pudessem, que graça teria escrever dessa maneira?
Mas a aula não é nada disso. Aí alguém pergunta: e o que é que ela é então? É (um pouco) assustadora. Não pela presença do mito, que não raros portugueses (perdão, filiados ao PLA – Partido do Lobo Antunes) dizem ser o próximo Nobel portuga. O mito some com cinco minutos e um sujeito que nunca sobe sobre seus mais de 30 livros e trocentos prêmios para se mostrar maior do que qualquer dos alunos que ocupam todos os lugares da sala. É assustadora por causa de: 1) humildade e; 2) coerência.
1) Humildade: não é pintar o autor bonzinho, que diz “ah, que é isso” ao ganhar prêmio ou nem sabe como isso ocorreu. Não, ele sabe muito bem. Trabalho e leitura. E tem uma prova viva disso na aula: a sebenta (não, sebenta não é uma colega de quem não gosto; é como falam apostila por aqui). Pois a sebenta do Gonçalo, xerocada de seus próprios livros (além de objeto para coleção) é um tapa na cara, sacudida no cérebro. Trechos de autores e mais autores (e mais autores, e artistas) que, basta ler o seu livro Biblioteca, não devem ser 10% do arsenal de leitura dele. Assustadora a minha ignorância. O Gonçalo se faz comprovação do clichê de palestra: todo escritor deve ser leitor. Mas detalhe: por ser fruto das leituras dele, a sebenta (eu me acostumei, você se acostuma) é fartamente ilustrada com sublinhados, esquemas, anotações, do punho do professor. Numa aula ele já comentou que “Leitura não é eu receber, é eu agir. Ler armado, pegar num objeto (agarrou a caneta como se fosse faca) remete à ação (…) não vou descansar a ler, vou agir”. A sebenta é prova dessa afirmação. E da humildade do Gonçalo que se entrega a todos os textos (de Nietzsche a Asterix) sem arrogância, querendo pensar e dialogar com o que lê sempre armado de caneta. E desarmado de ideias feitas. É como diz em A Perna Esquerda de Paris Seguida de Roland Barthes e Robert Musil, “poder de ser influenciado: sou tão forte que tenho diversas influências. A força para ser fraco o suficiente para receber a força dos outros”. E esse material ainda é amostra-grátis do trabalho dele: anotações, insights, trechos marcados, como, por exemplo, a reprodução do projeto My Favorite Books, de Olga Patiukova. É impossível ver sem se lembrar da gaveta de vazio do senhor Juaroz.
Não há como não pensar nos livros do Gonçalo. Não só ao ler a sebenta, mas nas aulas. E aqui já falo de 2) Coerência: é que o Gonçalo aparenta ser 100% coerente com o Gonçalo. Ele é os seus livros ou os seus livros são ele numa simbiose espantosa. E não é dizer que sua obra é autobiográfica. Longe disso. Talvez, autofilosófica. Parece que ele pratica o tempo todo uma espécie de escrita oral, falando-escrevendo frases que encaixam perfeitamente na sua bibliografia. Quando se pôs a comentar que a disposição segura de máquinas em fábricas para evitar acidentes e garantir eficiência é marca do racionalismo, me senti lendo a Máquina de Joseph Walser. Ou na hora em que concluiu que “mau livro é o livro como um bolo de arroz”, termina-se de comer e não há mais nada para pensar, imaginei uma 8ª conferência do Senhor Eliot. É como ter aula com o Gonçalo, o senhor Valéry, senhor Henri, Bloom (ou seu narrador). Se há quem tenha dificuldade de andar e falar ao mesmo tempo, Gonçalo parece ter dificuldade de caminhar, sentar, parar, respirar e não pensar ao mesmo tempo. Mas é quando ele diz “estou a pensar com vocês” e percebo que está mesmo, que a reflexão sobre uma escrita positiva e uma negativa é uma ideia que está aperfeiçoando ali, naquele agora, aí chego a cogitar o absurdo de, indiretamente, estar colaborando num futuro livro do professor. Essa escrita oral, escrever ideias mais que pensar, faz crer que daqui um ano vou ler num senhor Kafka ou Borges a frase “o ?sim’ é o fim do diálogo” que já li/ouvi na aula. E antes que isso pareça vaidadezinha beatlemaníaca ou elogio romântico do ser-escritor-essência, não. É que o semestre ainda não acabou, mas parece que esse agir do Gonçalo, extensão da sua escrita, pode dizer mais do que qualquer dica que venha a dar sobre escrever, composição, forma. Ao parecer que escreve mesmo ao dar aula, dar boa noite, demonstra uma ideia de máximo aproveitamento e profundidade de cada gesto. O mesmo que ele ambiciona na escrita. Que nada seja capricho, de graça. E se ele acredita que livros são máquinas de pensar, e acredita mesmo (vide sebenta), parece natural que busque que cada palavra seja uma engrenagem dessa máquina. E não existe máquina com engrenagem a mais, a menos, ou com engrenagens decorativas. Tudo tem função. Significado. Pois o Gonçalo, nesse seu viver-escrevendo, parece dizer que que acredita que assim deve ser a arte do romance, da poesia, da vida. E que ele busca isso o tempo todo.
* Reginaldo Pujol Filho é autor de Quero ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora, 2010) e organizador da coletânea Desacordo ortográfico, que reúne autores de diversos países lusófonos. Está cursando a pós-graduação em Artes da Escrita em Lisboa.
* Imagens que ilustram esse post: trechos da “sebenta” de Gonçalo M. Tavares.