Tom em dois tempos

Música

12.04.12

São José do Rio Preto é pau, é pedra, é o fim do caminho. No final da década de 60, só a cacofonia de frangos de muitas granjas quebrava o silêncio do lugar, fim de linha na região serrana do Rio de Janeiro. Ano passado, a chuvarada aleijou a geografia da cidade. É a lama, é a lama. Numa casa cercada de mato e servida por um laguinho passei férias de verão com um grupo de amigos. Noutra, nos desvãos dos morros, Tom Jobim conversava com passarinhos. Lá comporia depois “Águas de março”.

A maior diversão da rapaziada em férias era ir à cidade. Tomar cervejas no único barzinho, eventualmente azarar moças recatadas, dissipar um tempo infinito impermeável ao tédio. Num desses dias pintou no bar Tom Jobim. Sentou na mesa, puxou conversa, e entornou, com nossa franca cumplicidade, quantidades torrenciais de cerveja. Pediu uma, duas, vinte vezes, que cantássemos “Olê, olá”, sucesso de Chico Buarque que ele gostava, mas que ainda não conhecia. Não deu uma mísera canja. Deste fim de tarde festivamente dissoluto resta a lembrança entorpecida da eternidade sideral contemplada de uma charrete na volta para casa.

tomjobim

No começo dos anos 80, vou à casa de Tom no Rio com a tarefa de escrever uma capa para a revista onde trabalhava. A natureza era outra. Perdera inocência. Perguntei sobre a rotina. Tom disse de forma pouquíssimo convincente que todo dia madrugava. Só para chegar na praia na hora em que despontava no horizonte o que Vinicius de Moraes batizara de “rosa pinto”, forma mais decorosa da expressão, dita quando crianças zanzavam pela sala. A cada dia de conversa esta alvorada peniana ganhava novos matizes vernaculares. Ora era rosa c. (versão original de Vinícius), ora rosa p., com toda a variedade vocabular que o p. propagou. Na verdade, ele prezava tanto a graça e sua repetição quanto os rubores da aurora no Leblon.

Em várias das conversas que tivemos histórias divertidas atravessavam os temas percorridos. Tom tinha genuíno interesse por línguas. Nestes dias de convívio, ocupava-o o francês. Contou que, uma vez, voltando exausto de uma turnê nos Estados Unidos, refugiou-se na casa de praia de um amigo. Chovia aos borbotões, dias e mais dias sem parar. O único livro da casa era de engenharia, escrito em francês. Sem alternativa leu bons bocados de “La resistance des materiaux”, sobre as empolgantes propriedades do concreto protendido. Antes do francês, devorou dicionários de tupi-guarani, mas tempos depois largou de mão quando descobriu que na língua nativa predominante neste pedação do continente Iguaba não queria dizer rigorosamente nada.

Alguém na revista teve a ideia de fotografar Tom para a capa tocando piano nas areias do Arpoador. O clichê deu uma trabalheira infernal. Alugar um piano (mambembe e de um marrom claro indeciso), fretar um caminhãozinho e, pior, convencer Tom a efetivamente madrugar para que a foto pudesse ser feita com a praia ainda vazia. Ele relutou, com ótimas razões, diga-se de passagem. Afinal, concordou. Na véspera, à noite, telefonou. Queria saber, de um sujeito que sequer sabe dirigir, quantos HPs tinha o caminhão fretado. Não tinha a mais pálida ideia. “HPs são Homens Portugueses”, emendou. Temia que sobrasse para ele uma beirada de piano para carregar. A capa não derrapou por falta de HPs.

* Na imagem que ilustra esse post: a capa da revista Veja de 24/10/1984

* Flávio Pinheiro é Superintendente Executivo do Instituto Moreira Salles

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