Ainda que seja possível determinar sua data e local de nascimento (24 de setembro de 1943, Pisa) e, a partir de hoje, também sua data e local de morte (25 de março de 2012, Lisboa), a impressão que fica é que a obra de Antonio Tabucchi – por sua densidade e complexidade – lhe permite extrapolar essas marcas cronológicas, deixando-o em algum lugar entre o físico e o metafísico, o sonho e a realidade.
Foi um escritor europeu de formação clássica, como boa parte dos intelectuais italianos de sua geração, mas que direcionou esse preparo a uma escritura profundamente moderna – uma ficção que investe na dúvida, na incompletude e no enigma. Suas mais presentes filiações dão uma medida de sua ambição: Luigi Pirandello e Fernando Pessoa – foi Tabucchi quem primeiro traduziu Pessoa na Itália, organizando a publicação de suas obras, além de também ter traduzido ao italiano o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade.
Pessoa e Pirandello dão a Tabucchi o instrumental para forjar, em sua ficção, uma visão de mundo que condensa documento, fábula, imagem e memória, em uma convergência de diversos registros discursivos. A literatura de Tabucchi tem uma configuração de fronteira: nunca em um lugar específico, ou comprometida com uma língua determinada – transitou entre o italiano, o francês e o português (Requiem, lançado na década de 1990, foi escrito diretamente na língua de Pessoa).
Tabucchi estava interessado nos pontos de passagem – lugares em que toda certeza e segurança sobre quem se é caem por terra (“Me interessa ser sempre outro”, ele escreveu – ou, na versão de Enrique Vila-Matas, seu amigo, “Me chamo Tabucchi, como todo mundo”). Por isso suas histórias sobre o mar, sobre as ilhas dos Açores, sobre a solidão das baleias, sobre os delírios dos poetas e de obscuros pintores medievais. Seu desafio estava na personificação mágica das vozes alheias – Tabucchi queria ser Pessoa, queria ser Pirandello, ser sempre outro para conhecer a si mesmo. Por isso escreveu O senhor Pirandello é chamado ao telefone (um monólogo teatral publicado em fins da década de 1980) e Os três últimos dias de Fernando Pessoa (uma novela que ressuscita Pessoa para acompanhar, numa espécie de alucinação, a visita dos heterônimos ao seu leito de morte).
Um dos capítulos do livro sobre a morte de Pessoa chama-se “A minha vida foi mais forte do que eu” – e Tabucchi tomou essa frase como uma sorte de missão: conjurar a sobrevivência de Pessoa (e de tantos “outros”), fazer o passado continuar passando, num fluxo interminável.
A ficção de Tabucchi parece uma espécie de desdobramento teimoso da história que contava sobre seu descobrimento de Fernando Pessoa: na década de 1960, em Paris, compra uma edição francesa de “Tabacaria”. É neste poema que Álvaro de Campos afirma: “Não sou nada/Nunca serei nada/Não posso querer ser nada/À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Tabucchi, que agora está morto, dedicou sua energia criativa de escritor ao ofício de receber em si as vozes e os sonhos dos escritores do passado – ser, enfim, um cruzamento de vozes do além, contendo em si, de forma portátil, uma história muito particular da literatura. Por conta disso, escreveu Sonhos de sonhos, um verdadeiro exercício de metempsicose, no qual invade, através da ficção, o inconsciente de vinte artistas (entre eles Goya, Caravaggio, Freud e Pessoa).
Parte de seu aprendizado, contudo, também se deu fora das bibliotecas. Tabucchi cresceu no litoral da Toscana – e sempre fez questão de frisar que sua Toscana não foi aquela dos Medici (a dinastia responsável pela riqueza e magnificência de Florença, por exemplo), mas a Toscana anárquica dos portos. Tabucchi conta que, na infância e adolescência, circulava por entre os idiomas dos recém-chegados, aprendendo desde cedo a se movimentar entre fragmentos de histórias, lendo o mundo primeiro nos rostos rudes daqueles que chegavam pelo mar (como aconteceu, em Trieste, com Italo Svevo e Giani Stuparich).
Foi dessa vivência que tirou o material para escrever seu primeiro livro, Piazza d’Italia. “A única coisa que Garibaldo não conseguia compreender na vida, era a morte”, assim é a frase que abre o primeiro capítulo desse primeiro livro, escrito em 1973 e publicado em 1975. Gerações da mesma família, em uma mesma cidade da Toscana, passando por tempos políticos conturbados – e, no percurso da narração, Tabucchi faz com que realidade e sonho, loucura e sanidade, se misturem.
Parte do molde de Piazza d’Italia está em Cem anos de solidão, de García Márquez, publicado na Argentina em 1967 e já no ano seguinte traduzido na Itália por Enrico Cicogna – pela editora Feltrinelli, que poucos anos depois publicará também a estreia de Tabucchi. Uma prova de que uma das mais marcantes características de Tabucchi já estava lá desde o início: o gosto pelo atravessamento constante de textos, tempos e fronteiras, o que culmina sempre em uma ficção experimental, na medida em que ensaia novas posições para imagens já conhecidas.
Na literatura de Tabucchi, fantasia e sonho estão costurados na própria rotina da vida, presentes nos textos do passado e nos gestos do presente. “Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco/A mim mesmo e não encontro nada”, continua o Álvaro de Campos de “Tabacaria”. Nessa literatura das fronteiras, não encontramos nomes próprios – encontramos, sim, engenho, enigma e amizade. A literatura como um jogo de espelhos, um jogo de armar. “Minhas vidas são mais fortes que eu”, poderia responder Tabucchi.
* Na imagem que ilustra esse post: o escritor italiano Antonio Tabucchi (1943 – 2012)