Nos anos 1930,Walter Benjamin escreveu o célebre ensaio A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Argumentando sobre o declínio da aura, ou o que poderia também traduzir a sua unicidade no mundo, escreve que “fazer as coisas ?ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução.” Deslocando o pensamento de Benjamin de que a cada dia ficava mais nítida a diferença entre a reprodução e a imagem, nos deparamos com a experiência de Fabíola, um projeto em andamento do artista Francis Alÿs, em cartaz até 7 de julho na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Por aproximadamente 20 anos, Alÿs tem recolhido imagens de Fabíola, grande parte produzidos por artistas amadores, em mercados de pulgas e antiquários por toda a Europa e América. Fabíola foi uma romana do século IV que pertencia à família patrícia do Fabia gens e voltou a se casar após um divórcio. Um ato contrário às ordens da igreja, e que dela a afastou. Após a morte do segundo marido realiza uma vida de renúncia, penitência e ajuda aos pobres e doentes tão fervorosa que acabou sendo recebida de volta pela fé católica. Após a morte, tornou-se santa. Era conhecida como padroeira de divorciados, maltratados e viúvas.
Durante anos ficou no esquecimento, mas em 1854 voltou à popularidade como protagonista de um romance no qual o cardeal Nicholas Wiseman narra sua história. No ano seguinte, Fabíola torna-se visível por meio de uma pintura de Jean-Jacques Henner: uma mulher jovem vestindo um véu vermelho contra um fundo negro. A pintura nem de longe foi considerada uma obra-prima, mas logo se tornou uma imagem bem popular, passando a ser reproduzida incessantemente. Como ressalta a curadora da exposição, Lynne Cooke, Fabíola nunca fez parte de qualquer instituição religiosa. Não há uma igreja conhecida por praticar o seu culto. Sua imagem fabricada, seja por Henner ou a posteriori, assim como o seu culto, são atitudes que sobrevoam “o âmbito do privado e do íntimo.”
Para esse projeto, nenhuma obra sofreu qualquer interferência técnica. Artistas, datas e locais de origem são, em grande parte, desconhecidos. Para cada local de exposição, o artista organiza uma nova disposição das obras – que atualmente possui um arquivo com aproximadamente 400 pinturas – no espaço e ao mesmo tempo invade e penetra no cubo branco do museu, transformando não apenas a disposição da sala em que a obra/instalação está sendo exibida mas também seu entorno. Há um acento demasiadamente kitsch, popular, e ao mesmo tempo cínico na exibição desse conjunto, ao transmitir a atmosfera de um ambiente privado regido pelo excesso. A origem da imagem visual dessa santa parte de uma imagem preconcebida de uma – como avaliação estética – pintura mediana. Esse tom irônico e a forma como um objeto é deslocado do seu uso e lugar nos leva a pensar numa atitude duchampiana (para ler mais sobre esse artista, recomendo a crítica de Caroline Menezes, As reverberações da arte pós-Duchamp).
Na relação entre cópia e original que também interessa a Duchamp, porém, Alÿs está interessado na técnica, ou em como uma imagem perde sua referência ao longo do tempo e ambiguamente sua própria condição de origem. Há muito tempo a pintura de Henner deixou de ser o referente, sua vaga lembrança (em muitos casos é assim que ele se comporta) pode ser percebida entre Fabíolas que podem variar entre uma forma naïf e recatada, uma dama extremamente maquiada e ligeiramente sensual ou uma dama estilizada por meio de uma tapeçaria. Perde-se a referência sobre cópia e original, realidade e invenção, falso e verdadeiro. Estamos cercados por véus, narizes, bocas, descrições cenográficas e físicas completamente distintas umas das outras, além de escalas e técnicas que não seguem padrão ou ordem. Repetir torna-se diferença em Fabíola. Não se sabe ao certo o que motiva a aparição dessa mutabilidade, nem a razão precisa por trás de uma contaminação quase viral dessa imagem na vida privada.
Benjamin, em Das Passagen-Werk, refere-se ao museu como um espaço de identificação do imaginário coletivo em que este procura na arqueologia do passado uma impregnação nostálgica e libertadora. Como um arquivo-enciclopédia, o museu – especialmente, sob a perspectiva de Benjamin, no século XIX – corresponderia a uma ideia de totalidade arqueológica, tendo à disposição do público e num só lugar todas as formas, tempos e gostos através de um lugar de todos os tempos e simultaneamente fora do tempo. Com sua prática de arquivo e colecionismo, o museu estaria (supostamente) a salvo do próprio desgaste.
Mas é aqui que se instala outra verve crítica nessa obra de Alÿs: a obra trata também de uma ficção sobre a impossibilidade dos próprios modelos coletivos de representação. O que une aquelas obras são fragmentos que se interseccionam, pois sua quase totalidade é formada por distanciamentos (seja pelo fato de a escala, a técnica e, claro, a representação do ícone serem bem distintas), apesar da “origem” (ela mesma uma fabulação) ser a mesma. Fabíola torna aparente não só uma frágil definição entre cópia e original, mas fundamentalmente, e através de uma fina ironia, problematiza o lugar das práticas museológicas ao expor o museu, outrora senhor de si, como lugar de conflito, sendo transformado num ambiente doméstico impregnado de uma simbologia cafona, confusa e saturada.
* Felipe Scovino é crítico e professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.