André

Miscelânea

02.09.13

Sonhei com um garoto que era meu aluno. Durante as aulas, ele escorregava pela cadeira, sempre comendo um sanduíche e bebendo uma coca-cola, até que no final da aula ele estivesse praticamente deitado na cadeira. Sonhei que os outros alunos da classe esperavam pelo barulho da lata de coca se abrindo, para sentirem que a aula era mesmo uma aula e que podiam ficar tranquilos, porque aquele som era o sinal de que tudo andava bem sobre a Terra. No meu sonho, embora fosse mais rigorosa com os outros alunos, esse em especial eu permitia que fizesse tudo: comesse, bebesse, deitasse, não anotasse, dormisse. Porque sua presença na sala era a cifra de que tudo o que eu dissesse tinha sentido; que Guimarães Rosa tinha escrito “A terceira margem do rio” por algum motivo; que os simbolistas inventaram a sinestesia por alguma razão.

Depois eu sonhei que esse mesmo aluno era proteico e mimético: escrevia como Machado de Assis, Manuel Bandeira, Drummond, como quem quisesse ou, quando se enchia, escrevia como ele mesmo. Também desenhava, cantava e fazia piadas sobre tudo e todos, a maioria de altíssimo nível, uma ou outra de nível duvidoso. Mas mesmo assim, se era ele a contar, ficava engraçado, porque a metaironia misturada à inocência com que ele contava as coisas dava graça a tudo. Sonhei também que ele amadureceu, embora nunca completamente – o que só depõe a seu favor – e que se tornou um homem gentil e tímido, mesmo sendo acelerado, trabalhador compulsivo e sempre eufórica e loucamente inteligente. Num grau tamanho que podia tecer considerações bissextas, longas, bem informadas e originais sobre a história da Idade Média, o judaísmo ou o comportamento dos microorganismos chineses. E invariavelmente com humildade, o que dava mais inveja e até raiva. Mas não adiantava ter inveja ou raiva dele, porque ele era imune aos maus sentimentos. Rebatia-os com sua cara de amigo. Um olho em si mesmo – mirando a ponta do nariz, envergonhado – e outro na minha inveja, que imediatamente se desfazia em um “deixa disso”.

Nesse sonho, ele cursava arquitetura e ia trabalhar no MAM do Rio de Janeiro, com outro ex-professor da mesma escola, chamado Agnaldo Farias, que o amava e a quem ele também amava. Sempre que eu o via, desde então, eu reclamava: mas André (ele se chamava André), você está falando igual ao Agnaldo! Ele ria para dentro. Sentia orgulho de ser igual, sendo sempre diferente. Na verdade, talvez fosse o Agnaldo que falava igual a ele, mesmo antes de conhecê-lo.

Ainda sonhei com o André inúmeras outras vezes na vida: que ele compunha canções, incluindo uma linda parceria indivisível com José Miguel Wisnik; que ele se casaria com a mulher que, como ele dizia, amava de verdade; que ele se tornaria um profissional de sucesso no que gostava de fazer; que ele teria muitos admiradores e inúmeros amigos que o amariam sempre, desde sempre e para sempre. Sonhei que ele se tornou, como, aliás, nunca deixara de ser, um cara feliz. Mas feliz do jeito que eu mais aprecio a felicidade – de maneira inquieta, problemática, complexa.

Ontem eu acordei e vi que o sonho tinha sido realidade. Que o André existiu. Que ele ainda existe. Entendi que isso a que chamamos realidade também pode parecer sonho. Quando pessoas como o André Stolarski fazem parte dela e a transformam em algo excepcional.

No sábado o André foi para lá. Onde mora a Nhinhinha dos seus sonhos e onde ele, seja como alma ou como semente, guardará por nós, presos que estamos ao real.

* Noemi Jaffe é escritora. O que os cegos estão sonhando (Editora 34) e A verdadeira história do alfabeto (Companhia das Letras) são seus livros mais recentes.

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