Anotações próprias e impróprias do caderno de notas de Geraldo Sarno

Cinema

21.03.13

Para apresentar a série de filmes da mostra retrospectiva A linguagem do cinema, e como introdução à mesa de debates que irá realizar no próximo sábado, dia 30 de março, às 17h, no IMS-RJ, Geraldo Sarno extraiu de seu caderno de notas o conjunto de observações abaixo (por José Carlos Avellar, coordenador de Cinema do IMS).



do filme “Tudo isto me parece um sonho”, de Geraldo Sarno

 

 

Eu sou eu,
licuri é coco.

 

Dito popular entre os meninos que, década de 50, brincavam nas ruas de Poções, sudoeste da Bahia, próximo de Conquista, quase fronteira com Minas.

S/data: Em princípio, a obra é dada por acabada pelo artista quando os meios para sua realização foram plenamente utilizados e esgotados. De modo que, antes de iniciá-la, ele deve possuir uma avaliação exata dos meios de que dispõe e aproximar a Imagem que formulou a esses meios. Isso o torna meio artista – meio artesão. A carência de meios o conduz necessariamente a resgatar a “atitude criativa” durante o processo de realização/produção, que, assim, deixa de ser uma simples confecção a partir de um molde, de uma forma, de um roteiro. Construir ou compor a obra até alcançar a forma final poderia então se dar aceitando-se incorporar o imprevisto, admitindo-se o improviso, e assim estabelecendo-se uma dialética, um jogo, entre o esboço de forma que está na mente, a proto Imagem, e está refletida no roteiro escrito, e a que começa a ser captada pela câmara.

Esse processo de criação que, no cinema, remete diretamente a Vertov, lembra os poetas cantadores de improviso do sertão nordestino, os payadores do pampa argentino. O improviso no cinema significa que o realizador parte para a realização com uma grande margem de obscuridade.

Ou, segundo a fórmula de Godard: “Minha fórmula é simples e permite fazer o que se quer: fazer o que se quer a partir do se pode fazer, fazer o que se quer a partir do que se tem e não sonhar o impossível”.

15/09/2012:

Yo no soy cantor letrao,
mas si me pongo a cantar
no tengo cuando acabar
y me envejezco cantando:
las coplas me van brotando
como água de manantial.

 

José Hernandez, Martín Fierro.

04/11/2012: O improviso ocorre quando se dá o imprevisto. Exemplo: a rima imprevista lançada pelo contendor obriga o cantador ao improviso.

20/09/2012: O nascimento do documentário. Nietzsche e Eisenstein: apolíneo e dionisíaco, orgânico e patético. O que têm de comum esses dois pares de conceitos?

05/03/2012: Aquiles não evitou seu destino, ou, dito de outra maneira, permaneceu na memória dos homens em troca da morte na juventude. Agamenon tampouco driblou o seu: Clitemnestra e Egisto o sacrificaram assim que retornou vitorioso de Tróia. Os gregos sabiam que o destino do homem é trágico. “Antes não haver nascido e, se nasceu, morrer o mais cedo”, advertia Sileno. Dom Quixote é ainda mais trágico porque nos rimos dele. Cervantes nos mostra como seu herói pode ser fiel a si mesmo, no extremo do ridículo, do desprezível; e do divino. Creio que foi isto que Dostoievski buscou retratar nos personagens de seus romances como O idiota, Os demônios, Noites brancas.

23/12/2009: “Comprendió que un destino no es mejor que otro, pero que todo hombre debe acatar el que lleva adentro. Comprendió que las jinetas y el uniforme ya le estorbaban. Comprendió su íntimo destino de lobo, no de perro gregário; comprendió que el otro era él. Amanecia en la desaforada llanura; Cruz arrojó por tierra el kepí, gritó que no iba a consentir el delito de que se matara a un valiente y se puso a pelear contra los soldados, junto al desertor Martín Fierro.” – Borges, Biografia de Tadeu Isodoro Cruz (1829 – 1874), em El Aleph.

30/06/2005: “Diversos soldados que inquiri afirmam, surpreendidos, que o jagunço degolado não verte uma xícara de sangue”. “Afirmam ainda que o fanático morto não pesa mais que uma criança.”. – Euclides, Aguilar, p. 499.

15/12/2005: As abelhas do Raso da Catarina, segundo o cacique Afonso, dos Pankararé: uruçu, papa-terra, mosquito, jataí, cupira, que dá no cupim, arapuá, que é abelha branca, dá igual cupim nas árvores, a jatobá dá em pau oco, e o tatu peba fura por baixo, e mandassaia; as abelhas voam na reta; na seca, sem flor, bebem da água dos gravatás. Baixio do Murici, na Pedra do Urubu, é muito bonito. Lampião se escondia lá.

07/10/2004: Enfim, o documentário existe para documentar o impossível, o que não se pode documentar. O desafio é exatamente este: filmar o que se vê para mostrar o que não pode ser visto.

26/01/2005: “Todo bom documentário parece uma ficção.Toda boa ficção parece um documentário.” Godard. (Onde li isto?)

31/01/2005: “O cinema produz memória. A TV produz esquecimento.” Godard.

01/03/2005: Fiz do cinema meu encontro comigo mesmo.

24/01/2010: Para Um sonho na tormenta, a ficção sobre Abreu e Lima: Como trazer do passado, da história, imagens significativas que brilhem como um clarão, como um raio e, por um momento, o presente se esclareça?

16/02/2010: O novo sempre se apresenta como disforme. É diferente, estranha, a sua “forma”. Terá propriamente uma forma? É um monstrengo irreconhecível, não se assemelha a nada existente. A forma nova, de início, não encontra uma linguagem que a acomode. Como se fosse um ente bruto. Não se reconhece um ser a esse ente. Essa forma nova somente deixa o rastro da diferença. É preciso que, a partir dela, funde-se uma nova linguagem, novos paradigmas, para que seja compreendida e aceita.

18/02/2010: Surpreso, encontro-me onde estou. Não elaborei um projeto para estar onde me encontro. Mas o caminho – necessário? – me levou até onde não desejei, ou não esperava estar. Que seja!

12/01/2013: Houve um tempo em que, na defesa de suas convicções políticas, cineastas criaram obras de valor permanente que estão incorporadas à história do cinema e das artes. Basta lembrar Eisenstein, Vertov, nas primeiras décadas do século XX. Hoje a linguagem audiovisual, que tem como matriz o cinema, tornou-se a maneira preponderante de comunicação entre os partidos políticos e seus adeptos. Sobretudo nos períodos eleitorais. Esse sistema de comunicação é universal, embora mantenha feudos regionais e nacionais; sua característica fundamental: identidade de formas, formatos, identidade de linguagem. Essa identidade tem suporte na perfeita adequação dessa linguagem à existência e funcionamento do mercado em escala global. Os fundamentos dessa linguagem estão em Hollywood e na propaganda. As mensagens são dirigidas a consumidores de sabonetes, tratores, idéias e crenças; e não a um público que se quer livre, culto e criativo. Essas redes de comunicação funcionam como vasos sanguíneos que alimentam e mantêm a dinâmica da maquinaria global do mercado. Pois bem, os partidos conservadores se beneficiam desse sistema que está montado para eles e, em grande parte, por eles. Os partidos e movimentos políticos que não se conformam a esse sistema talvez devessem reunir seus marqueteiros para meditar sobre essas questões.

03/11/2007: “Se a opinião pública atingiu um estado em que o pensamento inevitavelmente se converte em mercadoria e a linguagem em seu sobrepreço, então a tentativa de por a nu semelhante depravação tem de recusar lealdade às convenções lingüísticas e conceituais em vigor, antes que suas conseqüências para a história universal frustrem completamente essa tentativa.” – Adorno/Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento.

12/01/2013: Os evangélicos no mercado mediático vendem arrimo, proteção, segurança, para esta e para a próxima vida. Saúde, prosperidade, cura do câncer, acesso aos templos de consumo (supermercados, shoppings) e aos bens produzidos pela indústria local, se a China permitir. E o mais precioso dos bens que têm na prateleira, intangível: a expulsão do demônio! Esse anjo que foi da desobediência, da rebeldia, da inconformidade.

12/01/2013: Como formar uma geração culta, informada, com domínio das ciências de ponta, que seja capaz de levar a nação a posicionar-se, num futuro próximo, de forma competitiva e independente, entre as grandes? Como mobilizar recursos em educação, cultura, comunicação, arte de forma que ocorra esse salto, e em tempo hábil? Como estimular filmes de ficção, documentários, programas de TV, jogos e entretenimentos que proponham temas e formas instigantes, inteligentes capazes de participar na formação de uma mentalidade liberta, independente, culta, criadora?…

15/03/2004: Ensino o que sei. Faço o que não sei.

08/08/2006: Marx em Crítica da dialética de Hegel e de sua filosofia em geral, Manuscritos de 1844: “A modo pelo qual a consciência é e pelo qual algo é para ela é o saber. O saber é seu ato único. Daí por que algo é para a consciência na medida em que ela conhece esse algo. Saber é seu único comportamento objetivo.”
E continua, expondo o pensamento de Hegel: “O objeto é apenas a aparência de um objeto, uma fantasmagoria mentirosa, pois em seu ser não é outra coisa senão o próprio saber que se opõe a si mesmo e, portanto, que a si opôs uma nadidade (um nada, que é o objeto), algo que não tem nenhuma objetividade fora do saber; ou dito de outro modo, o saber sabe que, ao relacionar-se com o objeto, está apenas fora de si, que se exterioriza, que ele mesmo só aparece ante si como objeto ou que aquilo que se lhe aparece como objeto só é ele mesmo.”
Estamos no campo do puro idealismo. Mas o objeto do documentário é a forma imprecisa e nem sempre facilmente apreensível que surge da maneira de ver, de saber o mundo em movimento no qual se está inserido e que nos perpassa, a forma na qual se manifesta o saber artístico, a Imagem. Parece-me que Marx concebeu estatuto distinto para arte. Na introdução de Para a critica da economia política, (Gundrisse), pode-se ler: “Para a consciência, pois, o movimento das categorias aparece como o ato de produção efetivo – que recebe infelizmente apenas um impulso do exterior – cujo resultado é o mundo, e isto é certo (aqui temos de novo uma tautologia) na medida em que a totalidade concreta, como totalidade de pensamentos, como um concreto de pensamentos, é de fato um produto do pensar, do conceber; não é de modo nenhum um produto do conceito que pensa separado e acima da intuição e da representação, e que se engendra a si mesmo, mas da elaboração da intuição e da representação em conceitos. O todo, tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, modo que difere do modo artístico, religioso e prático-mental de se apropriar dele.“(Grifo meu).
Portanto há um modo diferenciado da arte apreender o mundo. Porém não tenho certeza de que, em sua obra, haja momento em que se detenha sobre esta questão.

04/06/2008: “Somos artistas porque consideramos conteúdo os que não-artistas chamam de forma. Por isso pertencemos a um mundo ao inverso: o conteúdo torna-se para nós alguma coisa de puramente formal, inclusive nossa vida.” – Nietzsche, Gallimard, XIII, p. 213.

15/04/2008: ” O oleiro deixa a marca de sua mão no vaso de argila”. – Walter Benjamin

07/10/2008: “A ambigüidade é a manifestação imagética da dialética, a lei da dialética na imobilidade. Esta imobilidade é utopia e a imagem dialética, portanto, imagem onírica. Tal imagem é dada pela mercadoria, como fetiche. Tal imagem é representada pelas passagens, que são tanto casa quanto rua. Tal imagem é representada também pela prostituta, que é vendedora e mercadoria numa só pessoa.” – Benjamin, Passagens, p. 48.

24/12/2009: ” Os objetos devem ser lidos como Freud lê os sonhos. No capitalismo, os próprios objetos são sonhos coletivos que extraem seu poder alucinatório da produção em massa e do merchandising.” – George Steiner sobre Walter Benjamin, em Folha de S. Paulo, Caderno Mais, de 04/02/2001.



foto de Viramundo (1964). Sarno à direita entrevista um migrante nordestino em São Paulo

 

 

02/10/2007: Meu desassossego com o texto. Incômodo. Momentos sombreados. Os tropeços. Pra que serve relembrar isto? Divulgar isto? Documentário ou ficção?

20/07/2007: Gavião, o cangaceiro, dança um forró solitário na caatinga imensa e seca. Os pés ligeiros do dançarino levantam poeira no ritmo do xaxado.
“Eta! mundo véio sem porteira!”.

06/07/2004: Depoimento de Ambroîse Vollard sobre Cézanne: “Em meu retrato existem, sobre minha mão, dois pequenos pontos em que a tinta não cobriu a tela. Comentei isto com Cézanne: “Entenda, Senhor Vollard, se cubro esses dois pontos com alguma cor “au hasard”, serei forçado a repintar todo o quadro a partir desses pontos”.

10/08/2008: Curiosamente Tudo isto me parece um sonho, que documenta as vicissitudes de sua filmagem e que nada mostra do processo de montagem, é, no entanto, um filme de montagem. Foi na montagem que se construiu o filme tal qual é. O olhar criador se fez ver na montagem quando organizou a massa de material captado por duas câmaras.

05/04/2007: Fez de tudo para não ir. Somente a astúcia driblou a fingida loucura que o impediria de seguir Agamenon e Menelau. Foram dez anos de guerra e mais dez para retornar à casa, à mulher e ao filho que deixara no berço. Voltou só e mendigo, que os companheiros todos morreram, as naus naufragaram e os bens conseguidos nos saques se perderam. Teve que voltar a usar o arco e a espada para retomar o reino, a mulher e a casa. Velho e cansado, Dante o fez sair mais uma vez per l’alto mare aperto. Uma tormenta o espera, Ulisses naufraga e o mar se fecha em definitivo sobre ele. “O frati”, havia dito aos companheiros desta permanente aventura, que é a busca do conhecimento:

“Considerate la vostra semenza
fatti no foste a viver come bruti,
ma per seguir virtute e conoscenza.



Geraldo Sarno

 

 

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