As escolhas esotéricas de Veneza

Arquitetura

15.07.13

Bienal de Veneza 2013

Na edição de 2013 da Bienal de Veneza, o curador, Massimiliano Gioni, surpreende. Não apresenta, de início, expressões da arte contemporânea ou um recorte inédito da tradição da historia da arte. Denominada O palácio enciclopédico, com o subtema imagem, imaginação e imaginário, a mostra foi pensada a partir da obra do ítalo-americano Marino Auriti (1891-1980), que criou o protótipo de um museu destinado a guardar todo o conhecimento.

No entanto, o eixo de articulação curatorial que sobressai para o público é de outra ordem: a 55ª Bienal, em cartaz até 24 de novembro, se organiza em torno da série de trabalhos produzidos por personalidades não reconhecidas como artistas, muitas delas vinculadas ao universo esotérico. São nomes quase desconhecidos para estudiosos da arte, curadores, assim como para o público frequentador do ritual das exposições.

Entre eles estão Augustin Lesage (que dizia receber instruções do espírito de Leonardo da Vinci), Emma Kunz (paranormal) e Anna Zemánková (médium). O elenco é precedido pela exposição de O livro vermelho, do psicanalista Carl Gustav Jung, resumo de sua cosmologia à moda das iluminuras. E completado por Aleister Crowley – controverso personagem do ocultismo, considerado “maldito” – e a pintora Frieda Harris, que juntos recriaram as imagens do jogo de tarô.

Do grupo, Hilda af Klint (espírita), que estudou arte, se sobressai ao apontar para experiências pioneiras com a abstração no início do século XX.  Também chama a atenção a sala com os desenhos ilustrativos de Rudolf Steiner (teosofista, criador da Antroposofia). O imenso salão recebe esculturas de René Iché (França, 1897-1954) e Walter Pichler (Itália, 1936-2012), ambos com expressão de teor surreal, e acolhe a performance de Tino Sehgal (Londres, 1976), ganhador do Leão de Ouro de melhor artista desta edição.

Assistir aqueles pares de diferentes idades interpretarem, indiferentes ao que ocorre no espaço circundante, uma dança em que murmuram sons entre delicados e vigorosos, que remetem à ideia de antigos ritos, permite ao público a entrada nos domínios das poéticas contemporâneas, algo difuso nos dois espaços oficiais da Bienal, o Pavilhão Central e o Arsenale.

Bienal de Veneza 2013

Mesmo quando apresenta artistas contemporâneos em espaços próximos ao grupo esotérico, caso de Tacita Dean (Inglaterra, 1965), a escolha de Gioni recai sobre o sentido oculto e devaneador das imagens. O instigante vídeo Friar’s doodle (2010), realizado a partir de desenho feito por um frade, com quem Dean ia à missa na infância, exibe desorientada arquitetura à maneira de Giovanni Piranesi (Itália, 1720-1778), espécie de alucinação pelos espaços de um mosteiro.

Desde sempre, leituras da arte a vinculam a dom e mesmo à dádiva recebida de outros “planos astrais” (no uso da linguagem esotérica). E discursos artísticos formulados a partir das leituras dos surrealistas reconhecem a força do fenômeno chamado de arte expandida, que no Brasil tem como mais notório representante Arthur Bispo do Rosário (1910-1989).

Ele também está presente na Bienal, em sala no Arsenale, que ressalta a presença daqueles que ultrapassaram a tênue linha entre lucidez e delírio psiquiátrico.  Sua obra está próxima ao vídeo da também brasileira Tamar Guimarães (1967), que em conjunto com Kasper Akhej (Dinamarca, 1976) busca estabelecer relações entre as experiências mediúnicas da população de Palmelo, em Goiás, e o modernismo da arquitetura dos trópicos.

A surpresa quanto à escolha do viés espiritualizado e esotérico se deve ao fato de vários dos desenhos e pinturas do núcleo exercerem pouco impacto poético. Muitas das obras se repetem, sem apresentar para o público questões pertinentes à arte. Nota de exceção, paradoxalmente, reside na rica coleção de pinturas tântricas anônimas recentes, que, pertencendo a uma tradição nascida no século XVII, levantam questionamentos sobre os apontamentos da historiografia ocidental a respeito da criação da arte abstrata.

Bienal de Veneza 2013

Gioni, no texto do catálogo, nega a ideia iluminista de sistematização racional, sugerida pelo nome enciclopédia, e coloca em ênfase a possibilidade de associações por contrastes entre as obras dos diferentes artistas. Também diz que o Palácio Enciclopédico não é um show sobre artistas como médiuns.

Necessário se faz ressaltar que, mesmo insistindo na ideia de que aspectos de investigação da realidade, alheios aos processos racionais, acabam por invadir o terreno da arte, Gioni fortalece positivamente a presença do desenho, expressão que tende a exigir muito treino. Entre os nomes que selecionados se distinguem Matt Mullican (EUA, 1951), Christiana Soulou (Grécia, 1961), Patrick Van Caeckenberg (Belgica, 1960) e Lin Xue (China, 1968).

Mas se confrontarmos tudo isso ao peso que deu aos que produziram obras enquanto parte de um processo espiritualizado ou expandido, é possível pensar que ele possa conferir à arte o sentido de cerimônia, e, à maneira do filósofo italiano Mario Perniola (Pensando o ritual, Studio Nobel), entenda esta como operação e comportamento rituais.

Tradicionalmente, a Bienal de Veneza reflete sobre arts e urbs, mas, as escolhas de Gioni põem em ênfase a articulação entre repetição e arte, repertório e obsessão. E, se o seu palácio enciclopédico, com suas infinitas e ziguezagueantes possibilidades associativas, é capaz de rotular tudo como arte, ele reitera a pergunta: a Bienal ainda teria o papel de funcionar como bússola para o circuito artístico?

Bienal de Veneza 2013

Foi a ideia de que é preciso repensar o modelo da Bienal, pois ela já não corresponderia ao caráter multifacetado da cultura vigente, que levou Alfredo Jaar (Santiago do Chile, 1956) a criar Venezia,Venezia. A instalação pode ser lida como uma metáfora sobre a Europa que afunda em crises sem perder a majestosa pretensão cultural expressa na Bienal.

Artista de reconhecida capacidade irônica, Jaar propõe um ciclo de imersão/emersão de uma maquete dos jardins, local que abriga a principal mostra no pavilhão central e concentra uma série de representações por países, proprietários de 28 pavilhões circundantes. Ao inundar/reerguer os jardins, ele, induz, assim, a questões de geopolítica e política cultural, e como não poderia deixar de ser, também questões éticas e estéticas sobre a Bienal.

O evento, que se realiza desde 1895, reúne neste ano a maior quantidade de países. São 88, sendo que uma dezena deles se apresenta pela primeira vez. Como não há lugar nos jardins, os países alugam espaços espalhados pela cidade, que, com seus labirintos e eventos colaterais, continua a ser ela própria a grande atração. Entre os colaterais, a enxuta mostra Manet retorno a Veneza, no Palácio dos Doges, é prova de que leituras inéditas do passado da arte podem ser muito ricas.

Talvez por causa do crescimento – reserve pelo menos uma semana se quiser visitá-la de maneira razoável -, a Bienal expõe muita irregularidade também entre os pavilhões nacionais. A Alemanha trocou de Pavilhão com a França e apresenta grande instalação do artista chinês Ai Weiwei (1957), uma árvore feita de bancos. A instalação em que o artista reflete sobre a repressão política, exposta na Igreja de Santo Antônio, é mais impressionante, mas sua presença em pavilhão europeu é indício da nova geopolítica dos territórios culturais.

Bienal de Veneza 2013

A França, por sua vez, apresenta uma videoinstalação do albanês Anri Sala (1974), elaborada a partir de execução da música Bolero, de Maurice Ravel. Obra elegante, contudo sem a força pungente do vídeo do mesmo artista sobre a transformação urbana da capital albanesa, Tirana, resultado da ação pictórica de seus habitantes sobre edifícios destroçados por anos de guerra e descaso. Esse trabalho, intitulado Dammi i colori, está em exibição na vizinha Florença, na exposição Um ideal de beleza, no Palácio Strozzi, até 28 de julho.

Embora o tema não seja novidade, obras que discutem as relações do homem com a natureza e com o meio ambiente permeiam alguns dos mais belos e reflexivos trabalhos apresentados em diferentes pavilhões da Bienal. Recolocam, dessa maneira, questões entre operação artística e ordem política.

É o caso de Lara Almarcegui (1972), da Espanha. Além de um vídeo sobre o lixão de vidro Murano, em uma ilha vizinha, ela exibe uma instalação que reflete sobre uso de materiais nas construções. A artista calcula a quantidade de vidro, areia e ferro usada para erguer o pavilhão espanhol e mostra o material empilhado, nas salas, que, são, assim, desconstruídas metaforicamente. Aponta, dessa forma, para espaços de transição em que o urbano e as ordens naturais se encontram.

Walking on water, de Mohammed Kazen (1963), dos Emirados Árabes, projeta em 360??° imagens do alto mar, com as coordenadas GPS de localização iluminadas no centro do que parece ser a proa de um barco. Experiência imersiva sobre estar perdido no mar, a videoinstalação é capaz de provocar enjôo e tontura nos menos preparados para navegar em águas fluidas.

Ao mar, o público também é jogado na viagem proposta pela artista portuguesa Joana Vasconcelos (1971). A balsa Trafaria Praia estabelece uma correspondência simbólica com os vaporetos de Veneza, transformando-se em um pavilhão flutuante cujo interior se assemelha ao fundo do mar e, ao mesmo tempo, a um acolhedor útero.

Bienal de Veneza 2013

Comissariada pelo Grupo 111, a mostra FallingTrees, de Terike Haapoja (1974), no Pavilhão Nórdico, revisita o dramático acidente ocorrido na Bienal anterior, quando uma árvore caiu abruptamente sobre o pavilhão finlandês. Em termos cenográficos é uma das mostras mais bem elaboradas, competindo com a beleza sombria do pavilhão belga, que apresenta Krepelhout-Cripplewood, obra de Berlinde de Bruyckere (1964), com curadoria do Prêmio Nobel de Literatura, J. M. Coetzee.

Assemelhada a um corpo humano desfigurado, uma imensa árvore está deitada sobre uma cama macia, sendo repuxada por ganchos, cordas e cintas. Em diálogo com cenas retratadas por renascentistas como Ticiano, Belinni e Veronese, o tronco, em resina-pele translúcida, evoca representações de São Sebastião, o santo que deveria proteger Veneza das pragas.

Naquele que se tornou o pavilhão mais divertido, o da Rússia, Vadim Zakharov (1959) faz referência à lenda de Dânae, que já inspirou artistas tão diferentes quanto Ticiano, Rembrandt e Klimt. Filha do rei Acrísio, que a prende em câmara de bronze para evitar a previsão de um oráculo, de que seria morto pelo neto, Dânae recebe a visita de Zeus, sob a forma de chuva de  ouro, e dá à luz Perseu.

Zakharov constrói jogo entre o dourado (que remete ao quente, ao desejo) e o chumbo (evocador do frio, da indiferença), com moedas caindo de uma engenhoca vertical exclusivamente sobre a cabeça do público feminino, que deve usar uma sombrinha transparente para se proteger desse novo tipo de deus, o dinheiro.  As mulheres devem recolher as moedas e depositá-las em um balde, pondo o mecanismo em movimento. São autorizadas a levar apenas uma moeda, de lembrança. Muitas surrupiam moedas sobressalentes.

Bienal de Veneza 2013

Esse novo deus, pragmático e expansivo, em tempos de crise econômica, conseguiu se impor na Bienal de viés espiritualizado graças à presença chinesa. É imenso o poder do país asiático nessa edição, não exatamente o estético, mas o de ocupar/alugar tantos e gigantescos lugares. Somados todos os espaços, as salas, os artistas e as atividades colaterais com a presença chinesa – em algumas, há denúncia de censura do governo a obras -,passam de dez. Muitas dessas mostras não apresentam nada de novo, com ênfase em pinturas que buscam aliar heranças do realismo socialista com experiências da arte pop.

Mas é preciso ressaltar que a produção em vídeo dos chineses, na mostra Transfiguração, no Arsenale, mostra que seus artistas começam a se sobressair no uso das linguagens contemporâneas que aliam tecnologia e poesia. Ao revisitarem tradições da história da arte do Ocidente e do Oriente, exibindo domínio do desenho e de modernas técnicas de animação, conseguem compor um repertório visual e acústico próprio, em que o fascínio pela tecnologia parece ser contagiante.

* Graça Ramos é doutora em história da arte pela Universidade de Barcelona.

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