As surpresas da caixinha

Séries

24.06.14

Ao menos dentro de campo, esta copa está saindo melhor que a encomenda. Não me refiro apenas às coisas quantificáveis, como a ótima média de gols e a lotação quase total dos estádios, mas ao equilíbrio na balança entre o previsto e o inesperado.

Vamos ver se me explico. Se, por um lado, o futebol se distancia da “ditadura da justiça” que prevalece, por exemplo, no basquete, em que o melhor sempre vence, por outro lado não chega a ser um jogo totalmente aleatório, em que “tudo pode acontecer”. Não pode, por exemplo, o Irã ser campeão do mundo, ou Papua Nova Guiné golear a Alemanha.

Nesta copa, até agora, algumas coisas previsíveis se confirmam – como o Brasil se classificar em primeiro no seu grupo, ou a França bater facilmente Honduras –, a par de outras tantas surpresas, como a eliminação precoce da Espanha ou a performance espetacular da Costa Rica, que era o patinho feio do chamado “grupo da morte” e que foi a primeira a sair viva dele, deixando para trás três campeões do mundo.

Esse balanço entre o que estava programado e o que sai do script é o que faz do futebol um teatro vivo, cuja trama se escreve a cada ato, com o corpo dos atores/jogadores, um objeto indomável (a bola), um cenário sujeito às intempéries e uma plateia turbulenta.

Brilho e mediocridade  

Mas vamos falar da seleção brasileira.  Nos três jogos disputados até agora ficou claro que dependemos muito do brilho de Neymar para suplantar as defesas adversárias e encontrar o caminho do gol. (Algo semelhante acontece com a “Messi-dependente” Argentina.)

Não que os demais jogadores sejam ruins. Embora alguns (Daniel Alves, Paulinho, Fred) não estejam atravessando uma boa fase, são todos de primeiro nível ou quase. Mas o fato é que, de um modo geral, falta criatividade, falta inteligência, falta articulação no meio de campo, falta invenção, falta atrevimento. A maioria das jogadas de ataque brasileiras sai da chamada “ligação direta”, ou seja, lançamentos dos zagueiros (em especial David Luiz) para a correria de Neymar, Hulk ou Fred.

Que não me entendam mal. O Brasil pode muito bem ser campeão. É, de fato, um dos favoritos, como aliás tem sido há mais de meio século. Mas, mesmo que chegue ao título, dificilmente encantará o mundo, a não ser em um ou outro lampejo de Neymar ou, quem sabe, de Oscar ou Willian.

A “era Dunga” continua

Esse modus operandi da seleção atual não difere muito do que tem sido nosso padrão desde os anos 1990: times que se organizam defensivamente, jogando um futebol que “dá para o gasto” e que depende, para vencer, do talento extraordinário de um ou dois jogadores (Romário, coadjuvado por Bebeto em 1994; Ronaldo, coadjuvado por Rivaldo e Ronaldinho em 2002). O futebol mágico e envolvente, tramado por uma constelação de craques (como as de 1958, 1970 e 1982), ficou no passado. Dificilmente voltará a ocorrer. A “era Dunga”, em sentido lato, veio para ficar.

Não se trata de nostalgia ou pessimismo, mas de observação de certas condições objetivas. Até meados dos anos 1980, nossa seleção era formada por jogadores que atuavam, majoritariamente, no Brasil. Sim, eu sei que os craques da seleção de 1982 (Zico, Falcão, Sócrates, Cerezo, Júnior) atuaram na Europa. Mas eles só foram para lá depois de brilhar em seus clubes e na própria seleção, depois de se tornarem ídolos locais e nacionais, depois de ajudarem a sedimentar um padrão de qualidade, um aprendizado coletivo, em nossos clubes e campeonatos.

Hoje é diferente. Os jogadores talentosos são sugados pela Europa (e agora também pela Ásia e pelo Oriente Médio) quando ainda estão em formação. Amadurecem fora do país. São quase estrangeiros quando vêm jogar aqui pela seleção. (A esquadra chilena tem mais atletas que atuam no Brasil do que a brasileira.) Há um contraste flagrante, um divórcio absoluto, entre o futebol que os brasileiros praticam nas ligas europeias e o futebol de segunda linha que vemos nos campeonatos daqui.

Pelos implacáveis mecanismos do capitalismo global, e provavelmente também por erros políticos e de gestão, nossos campeonatos – em que já se confrontaram Pelé e Garrincha, Rivelino e Ademir da Guia, Tostão e Gérson, Falcão e Sócrates  – são compostos hoje por jogadores medianos, para não dizer medíocres. Alguma coisa se rompeu na linha evolutiva do futebol brasileiro, que vinha desde os anos 1930. Não temos mais, a não ser em um ou outro espasmo, um “estilo brasileiro” para mostrar ao mundo.

Futebol transnacional

Se há uma tendência que esta copa confirma espetacularmente é a da internacionalização das seleções. Como mostra uma matéria publicada no último fim de semana pelo Estadão: nada menos que 83 jogadores deste Mundial não nasceram nos países pelos quais atuam. Somando, aos naturalizados, os filhos de imigrantes, o número de “estrangeiros” chega a mais de duzentos. O caso mais emblemático talvez seja o dos irmãos Boateng, que se enfrentaram no último sábado, um deles (Jérôme) atuando pela Alemanha, o outro (Kevin-Prince) por Gana.

Se esse tipo de mistura servir de antídoto ao nacionalismo racista e xenófobo ora em ascensão na Europa, terá sido mais uma contribuição do futebol para a felicidade humana. Recordo, a esse propósito, que, no início da Copa de 1998, o líder ultradireitista Jean-Marie Le Pen dizia que a seleção francesa – com o argelino Zidane, o africano Desailly, o basco Lizarazu, o armênio Djorkaeff – não representava o país. Ficou falando sozinho. 

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