É frequente na história da música a proposição de desafios musicais, nos quais compositores instigam intérpretes a resolverem “enigmas” sonoros de diferentes espécies. Um dos exemplos mais célebres é a “Oferenda musical” de Johann Sebastian Bach. Instado a compor uma série de fugas – estrutura musical onde os temas são repetidos por imitação – a partir de um tema proposto pelo rei Frederico II da Prússia, o velho Bach “devolveu” o desafio ao rei ao apresentar, além das fugas em suas formas tradicionais, uma “fuga-enigma”, onde o compositor omitia os lugares exatos onde as imitações se davam, cabendo ao intérprete resolver esta espécie de charada musical. No cabeçalho da partitura desta fuga, o mestre alemão, certamente com o intuito de salientar o caráter de provocação musical, inseriu a inscrição latina Quaerendo Invenietis, que pode ser traduzido em português como “procura que achas”.
Ora, “Procura que achas” é justamente o título de um choro de Pixinguinha, composto cerca de 200 anos depois da fuga-enigma de Bach, mas que se mantém na mesma linha de charada musical do compositor alemão. Só que no caso de Pixinguinha, o “enigma” consistia na descoberta, por parte dos acompanhadores de choro, dos difíceis caminhos de harmonia desta composição. Nas rodas de choro nos ambientes populares do início do século XX, instrumentos acompanhadores, normalmente violões e cavaquinhos, executavam as harmonias “de ouvido”, a partir da audição da melodia proposta pelo solista, e os bons acompanhadores eram aqueles que não “caíam”, ou seja, não erravam na escolha da harmonia.
Em choros particularmente difíceis, como o “Procura que achas”, violonistas e cavaquinistas certamente penavam para encontrar as tortuosas modulações harmônicas que a melodia sugeria. Aliás, este desafio não se resumiu a esta música na obra de Pixinguinha: um outro choro, também com o provocativo título de “Quebra-cabeças”, traz a mesma proposta de charada harmônica. Embora estes dois choros tenham sido editados na década de 1960, eles permaneceram praticamente desconhecidos do grande público, em parte pelo fato de não terem sido até hoje gravados (terá sido justamente pelo caráter de “charada” das duas composições?). Agora, o Instituto Moreira Salles prepara uma nova publicação onde raridades como estas serão novamente disponibilizadas para músicos e amantes da música em geral: o livro Pixinguinha – Inéditas e redescobertas, reunindo 20 músicas do mestre brasileiro, a ser lançado brevemente. É claro, todas as charadas musicais já se apresentarão devidamente “resolvidas” para deleite de músicos e ouvintes.
Charadas à parte, o que se constata é o fato de que o verdadeiro enigma que une compositores como Bach e Pixinguinha é a capacidade de criação de músicas que se tornam atemporais. E este é certamente um enigma sem resposta.
* Pedro Aragão é músico e professor.
* Na imagem que ilustra esse post: trecho da “Oferenda musical” de Bach.