Em agosto de 1993, eu estava no Globo e fiz a matéria sobre os 70 anos de Barbara Heliodora. O editor fez questão de escrever no subtítulo que ela era a maior crítica de teatro do Brasil. No dia seguinte, o editor de opinião apontou o equívoco da opção, pois era cabotino o jornal exaltar dessa maneira sua própria crítica teatral.
Há 23 anos escrevendo no principal jornal do Rio, Barbara desperta tantas paixões, sobretudo contra ela mesma, que parece precisar ser defendida – ou desmedidamente exaltada pelos que gostam dela. Continua sendo assim agora, aos 90 anos que completa neste 29 de agosto. O peso de sua opinião é inversamente proporcional à popularidade que desfruta na chamada classe teatral. O fato de a revista “Veja” também tratá-la, habitualmente, como a maior crítica do país não colabora em nada para melhorar essa situação, acabando por reforçar-lhe a pecha de conservadora.
Gerald Thomas já desejou que ela morresse, Ulisses Cruz barrou sua entrada num espetáculo que dirigia, seu amigo Sergio Britto se queixava do amargor de suas opiniões, nove entre dez jovens atores e diretores do Rio a temem e/ou a odeiam.
É quase impossível odiar Barbara após conhecê-la. É uma pessoa extremamente amável, divertida, apaixonada por música, por futebol (seu pai, Marcos Carneiro de Mendonça, foi goleiro do Fluminense e da seleção brasileira) e amiga fervorosa dos amigos. Destes, é preciso dizer, muitos são elogiados com frequência por ela, talvez pela afinidade de gostos e pensamentos. Mas os que não são permanecem amigos, caso de Antonio Abujamra, um companheiro de décadas que nunca desfez os laços mesmo após sofrer duras críticas.
Amar o teatro, como Barbara ama desde muito cedo, não combina com ver quase 20 peças por mês – número que ela agora, aos 90 anos, está reduzindo para oito. Por mais benevolente que seja o espectador, não há tantas coisas boas para se ver em teatro numa cidade. Pode ser Rio, São Paulo, até mesmo Nova York. E crítico benevolente, por definição, não é crítico, é outra coisa. Logo, muito da raiva que Barbara acaba vazando para os seus textos é legítima. Ela não faz isso por não gostar de teatro, como há quem diga, e sim por gostar muito de teatro.
Não estão de todo errados os que veem superficialidade em muitos de seus textos, os que se queixam dos adjetivos mal explicados, os que apontam erros de informação. Falta espaço, não sobra ânimo, é pouca a paciência após tantas décadas na plateia.
Quando ela se apaixona por um espetáculo, no entanto, seus olhos brilham como se ainda fosse a jovem que atuava em peças infantis no Teatro Tablado. Eu vi isso, por exemplo, em função do Romeu e Julieta do Grupo Galpão, um espetáculo brilhante, alegre e que não tratava Shakespeare como uma estátua a ser adorada. Barbara, a maior especialista brasileira no gênio inglês, também não trata, mas é realmente impiedosa quando encenações de peças do bardo não a satisfazem.
Um diretor que a detesta (ou detestava) contou para mim certa vez, com ódio, que vira a tese de doutorado de Barbara (A expressão dramática do homem político em Shakespeare) como título de referência na Royal Shakespeare Company, em Londres. Ou seja, seu conhecimento do assunto é consagrado.
Barbara também entende muito de Tchekhov (outra grande paixão), de Ibsen, de muitos outros. De Nelson Rodrigues insiste no ponto de que a grande contribuição do dramaturgo tenha sido levar a fala coloquial para o palco. Nelson foi mais do que isso, mas também não foi o trágico praticamente desprovido de humor que assola a maioria das montagens paulistas pós-Antunes Filho.
Ela pode não ser a maior crítica do Brasil, como Globo e Veja querem, até porque essa competição não faz muito sentido. Também não é a fã mais ardorosa dos experimentalismos, sendo mais simpática, para citar um gênero, aos musicais. Mas não dá para pensar a história do teatro no país sem Barbara, sem sua inteligência, sem seu sarcasmo, sem seu mau humor divertido (ao menos para quem não é alvo dele), sem sua opinião firme sobre o que vê – numa terra e num tempo em que não faltam opiniões, mas em que a firmeza é pouca.
Barbara chega aos 90 anos com a cabeça mais jovem do que a de muitos de nós. E com mais amor pelo teatro do que quase todos nós. Digo isso por ter tido o privilégio de conhecê-la de perto e por admirá-la sem deixar de enxergar defeitos em parte de suas críticas. Contrariando o que Gerald desejou (e que já renegou, aliás), os 90 anos de vida de Barbara merecem ser celebrados.
* Luiz Fernando Vianna é coordenador de internet do IMS.