Bergman de trás para a frente

No cinema

12.01.12

A televisão brasileira, aberta ou fechada, costuma ser um esgoto a céu aberto. Mas de vez em quando surge na programação um diamante puro que a redime, ao menos por algum tempo.

É o caso da Mostra Bergman que o Telecine Cult está exibindo nas noites de sábado e do último domingo deste mês.

Como Fellini ou Buñuel, Bergman é mais que um país ou um continente: é todo um planeta. Cobrindo duas décadas da carreira do cineasta, a mostra do Telecine explora uma parte significativa desse território.

Estão programadas algumas obras-primas absolutas: O sétimo selo (dia 29, 22h), Morangos silvestres (dia 28, 23h45), Persona (dia 21, 23h45), Gritos e sussurros (dia 21, 22h). Curiosamente, a sequência das sessões inverte a ordem cronológica em que os filmes foram realizados. O espectador é levado a conhecer Bergman de trás para a frente.

Assim, neste sábado, dia 14, é a vez de Cenas de um casamento (1972), psicodrama claustrofóbico que é um dos pontos de culminância do “cinema de câmara” (poucos personagens, encenação fechada num único ambiente) iniciado pelo diretor com Através de um espelho (1961), programado para o dia 28.

Embate com Deus

A obra de Bergman pode ser vista como um embate cada vez mais profundo e contundente do autor com a ideia de Deus e da transcendência. Os filmes que a televisão está mostrando são momentos importantes desse confronto.

Filho de um pastor luterano, Bergman cresceu oscilando entre o fascínio e a repulsa à mitologia e à iconografia do cristianismo. Ao longo da vida, foi questionando uma a uma as antigas certezas da fé até chegar, segundo suas próprias palavras, à concepção de que “o ser humano tem dentro de si sua própria santidade, que é deste mundo e não tem explicação fora dele”.

O filme em que esse questionamento é mais explícito, quase transparente, é O sétimo selo (1956), a célebre parábola do cavaleiro que, ao voltar das Cruzadas, joga xadrez com a morte para tentar prorrogar seu tempo de vida. A fonte mais remota de inspiração para o filme foram afrescos tenebrosos vistos pelo cineasta numa igreja quando menino: a morte, o demônio, os horrores do inferno.

O filme marca também o início da colaboração entre Bergman e um de seus atores mais constantes, o extraordinário Max von Sydow, que trabalharia com o diretor em outras nove ocasiões. Aqui, uma cena chave dessa obra soberba:

Acerto de contas com o pai

A ruptura do autor com Deus se consumaria em Através de um espelho, em que a atormentada personagem Karin (Harriet Andersson) transita entre o mundo terreno e o divino, só que o divino é uma projeção sua: ela é esquizofrênica. Bergman considerava este filme um tanto artificial e dizia que o que o mantinha de pé era a atuação de Harriet Andersson. Ainda assim, ganhou um dos três Oscars do diretor (os outros dois foram por A fonte da donzela e Fanny e Alexander).

Se essas obras expressam o entrevero de Bergman com Deus, Morangos silvestres (1957) é, de forma sublimada e indireta, seu acerto de contas com a figura do pai. Na figura do velho professor recluso (Victor Sjöström) que revê o seu passado durante uma viagem para receber um título honorário, o cineasta criou “um personagem que se assemelhava a meu pai, mas que no fundo era eu, inteiramente eu”, conforme escreveu no livro Imagens.

Não por acaso, o ator escolhido para o papel, Victor Sjöström, é uma espécie de pai artístico de Bergman. Foi o mais importante pioneiro do cinema sueco, realizador, nos EUA, de obras-primas como A letra escarlate (1926) e Vento e areia (1928).

Alma feminina

Persona (me recuso a usar o estúpido e moralista título nacional Quando duas mulheres pecam) e Gritos e sussurros são capítulos importantes da investigação da alma feminina pelo diretor.

O primeiro, realizado em 1965, põe frente a frente duas mulheres numa clínica de repouso, uma atriz que de repente emudeceu (Liv Ullmann) e sua enfermeira (Bibi Andersson). De início contrastadas pela loquacidade da enfermeira e o silêncio da atriz, elas acabam se identificando a ponto de fundir suas identidades, como na célebre imagem composta dos rostos dessas duas esplêndidas.

O motivo do rosto e da identidade perpassa toda a obra de Bergman, aflorando por vezes até nos títulos: O rosto, Através de um espelho, Persona, Face a face

Bergman dizia que Persona tinha salvado sua vida e que foi a primeira vez na carreira em que não se preocupou em saber se agradaria ou não ao público. Aqui, um lindo balé de rostos, mãos, luz e sombra das duas mulheres:

Gritos e sussurros (1972), por sua vez, é obra de plena maturidade, que atesta a habilidade inigualável do autor de plasmar em imagens indeléveis os dramas da alma. O filme, aliás, tem origem numa imagem que perseguiu o diretor durante anos, sem que ele soubesse por quê: quatro mulheres vestidas de branco, num quarto com paredes vermelhas.

Bergman foi burilando e indagando essa imagem até que emergisse dela toda a história: numa casa de campo, uma mulher agoniza, cercada por suas duas irmãs e uma criada. Esse drama foi filmado como um concerto de câmara, com um rigor e uma precisão absolutos. Cada enquadramento, cada movimento de câmera, foi elaborado meticulosamente pelo cineasta com seu fiel diretor de fotografia Sven Nykvist.

“Naquela altura eu acalentava a ideia de trabalhar com a câmera imóvel“, relembra Bergman em Imagens. “Por trás disso estava uma convicção a que eu chegara: quanto mais violenta é uma sequência, menos a câmera deve participar.” O resultado disso é de uma intensidade quase insuportável.

Cada personagem expressa em seu rosto, em seu corpo, em seus pequenos gestos, todo um universo dramático. Basta dizer que as atrizes – todas extraordinárias – são Harriet Andersson (a agonizante), Liv Ullmann, Ingrid Thulin e Kari Sylwan. Cada uma tem seu momento de revelação. Em uma cena, a personagem Karin (Ingrid Thulin) que se desnuda, literal e figuradamente, diante da câmera.

Em Gritos e sussurros realizam-se as duas concepções básicas do Bergman maduro: a ideia de que a divindade do ser humano se expressa no amor (vide a cena entre Kari Sylwan e Harriet Anderson que reproduz a Pietà) e a visão do cinema como “linguagem que fala da alma para a alma, em termos que, quase de maneira voluptuosa, escapam ao controle do intelecto”.

Poucas vezes a tela da televisão comportou tanta beleza.

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