Casa Walther Moreira Salles

Quadro a quadro

06.05.11

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Projetada em 1948, a casa do embaixador Walther Moreira Salles (hoje sede do Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro) foi inaugurada em 1951. Situada no alto da Gávea, em um terreno com aproximadamente 10 mil metros quadrados, e em meio a uma exuberante mata atlântica (floresta da Tijuca), é um autêntico palacete moderno – também herdeiro das tradicionais “casas de chácara” cariocas, como a residência Raimundo Ottoni de Castro Maya (1954-1957). [1] Isto é, trata-se de uma construção monumental, elegante e austera, projetada para abrigar tanto uma família numerosa quanto uma intensa vida social, marcada por frequentes recepções para convidados ilustres. [2] Um belo registro dessa vida aparece no filme Santiago (2007), de João Moreira Salles, em que, por intermédio da figura idiossincrática do mordomo argentino Santiago Badagiotti, vemos os bastidores dessa história.

Filho de diplomata, Olavo Redig de Campos, o autor do projeto, havia feito sua formação universitária na Escola Superior de Arquitetura de Roma, e, naquele momento, já dirigia o Serviço de Conservação do Patrimônio do Itamaraty, responsabilizando-se pelos projetos das embaixadas do Brasil no exterior. Portanto, embora menos conhecido do que outros arquitetos modernos cariocas, como Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira, Sérgio Bernardes ou os irmãos Roberto, entre outros, era o profissional ideal para o programa em questão. O projeto paisagístico ficou a cargo de Roberto Burle Marx.

Organizada em torno a um pátio central, a casa apresenta um estudado contraste entre o classicismo italiano de Redig de Campos e o informalismo imprevisto do desenho de Burle Marx. Ou, em outras palavras, entre a civilização e a natureza. Envolvido por uma ala íntima, de um lado, e por dependências sociais em outros dois lados e meio, esse pátio trapezoidal se abre para o jardim com piscina e a vista da montanha, ao fundo, através de uma passagem livre ao final do volume da sala de jantar, a oeste. Essa passagem é delicadamente coberta por uma marquise ondulante – elemento muito característico da arquitetura moderna carioca -, que fecha de modo sensual a composição do pátio, envolvido inteiramente por uma elegante colunata externa.

Visando preservar a parte íntima da casa, o arquiteto protegeu a fachada dessa ala com quebra-sóis verticais móveis, que permitem controlar tanto a incidência solar sobre o corredor de acesso aos quartos, quanto a sua visibilidade aos olhos de visitantes e empregados. Já na área social, as paredes envidraçadas ou vazadas por rótulas e venezianas aludem a um sentido de permeabilidade e movimento, muito propício a um lugar de festas. Com pés-direitos generosos, os ambientes sociais se distribuem ao longo de três corpos edificados, sendo as salas de estar e de jantar, braços menores do volume principal, de acesso, que abriga as dependências de serviço, de um lado, e a chapelaria, o hall de entrada, o cofre-forte, a biblioteca, a sala íntima (conhecida como “sala dos azulejos”) e o terraço, de outro.

Distinguindo-se do conjunto, a entrada principal da casa apresenta uma feição mais clássica do que moderna, com duas altas colunas revestidas de mármore contra o fundo de uma parede pintada em tom vermelho terroso, inspirado na famosa Vila dos Mistérios, de Pompéia.[3] O piso é de mármore italiano Rosso Verona e Botticino, compondo um desenho geométrico losangular em vermelho e branco que acentua as diagonais, dissolvendo a rigidez solene da arquitetura. O mesmo piso se prolonga nas amplas áreas de circulação social da casa, que envolvem os cômodos como galerias cobertas (loggias), fechadas por portas de correr de vidro. Nas salas de estar e de jantar, o piso de mosaico é substituído por tábuas de madeira corrida, material também presente nos móveis da biblioteca, decorada em estilo inglês. Na sala íntima, as paredes e piso são revestidos por ladrilhos hidráulicos e azulejos portugueses azuis e brancos, criando um efeito decorativo sinestésico que contrasta com a brancura dominante da casa. Decididamente, o uso variado de materiais nobres reforça as surpresas no percurso de visitação à casa, criando um efeito próximo daquilo que Le Corbusier definiu como promenade architecturale.

A água é também um elemento importante na criação da ambiência da casa, aparecendo na fonte do pátio, na piscina do jardim, e no espelho d’água situado entre a sala de jantar e a ala de serviço, arrematado por um mural sinuoso de azulejos representando lavadeiras, feito por Burle Marx.

Se o mestre Lucio Costa, no projeto para os edifícios do Parque Guinle (1943-52), também no Rio de Janeiro, já havia demonstrado a possibilidade de uma perfeita adequação entre um léxico moderno – corpos lineares, pilotis, superfícies envidraçadas, brise-soleil – e referências históricas e vernaculares – treliças e cobogós -, Olavo Redig de Campos prolonga aqui os seus ensinamentos, adaptando-os, no entanto, a um vocabulário mais luxuoso. Vem daí o gigantismo dos módulos de elementos vazados que utiliza (blocos de concreto pintados de branco), que se distanciam da função original de sombreamento e discrição, e assumem uma feição eminentemente decorativa, associada à monumentalidade.

Se o projeto moderno em arquitetura buscou, em linhas gerais, a produção de standards, rumo a uma tipologia progressivamente anônima e coletiva – daí a sua abstração geométrica -, a casa do embaixador Walther Moreira Salles na Gávea, ao contrário, utiliza-se dessa linguagem em prol de uma formalização singular e, mais do que isso, extremamente pessoal. O sinal mais evidente disso são as maçanetas das portas, moldadas todas segundo a pegada única do seu proprietário. Mas em que pese a especificidade particularista do programa e das soluções encontradas nesse caso, é preciso lembrar que o desvio da norma funcionalista foi uma das grandes marcas da arquitetura moderna brasileira, ocasionando tanto as duras críticas de Max Bill ao “irracionalismo” dessa produção [4], quanto o sincero lamento de Walter Gropius diante de obras como a casa de Oscar Niemeyer em Canoas (1952), que, apesar de muito bela, em sua opinião, infelizmente não poderia ser multiplicada.[5] Assim, por diversas razões, a residência Moreira Salles também nasce com status de obra única. Mas o seu porte e aspecto palaciano deram-lhe maleabilidade, permitindo a sua sobrevida, em novos tempos, como instituto cultural.[6]

 

Notas

 

[1] A residência Raimundo Ottoni de Castro Maya, atual Museu Chácara do Céu, é uma antiga chácara que foi redesenhada segundo uma linguagem modernista em 1954 por Wladimir Alves de Souza, no bairro de Santa Tereza.

[2] “Esta casa, sem dúvida a mais luxuosa das mostradas neste livro, é um exemplo de um programa cada vez mais raro nos dias de hoje: o palacete, destinado não só a abrigar a família, mas também a grandes e freqüentes recepções.” Henrique Mindlin, Arquitetura moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p. 69 (a edição original é de 1956).

[3] Ver Renata Reinhoefer França, “Arquitetura cifrada: a casa da Gávea de Walther Moreira Salles”, In: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.104/84. Segundo a autora, essa informação foi confirmada por Antônio Fernando De Francheschi em entrevista telefônica.

[4] Ver Max Bill, “O arquiteto, a arquitetura, a sociedade”, em Alberto Xavier (org.), Depoimento de uma geração. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

[5] Sobre isso, diz Niemeyer: “O Gropius teve aqui. Um arquiteto medíocre, mas ele era professor, era inteligente e tal, conversava, era instruído, falava bem. Mas ele foi lá ver a minha casa das Canoas, e quando saiu disse  pra mim: ?olha, a sua casa é muito bonita, mas não é multiplicável.’ Mas que burrice fantástica! Era um terreno sinuoso, eu não podia procurar um terreno igual. Então você vê como eles pensavam errado, esse pessoal da Bauhaus. O Le Corbusier é que teve a coragem de dizer: ?é mediocridade ativa, não sabem nada, só querem criar regras’. Depois todo mundo tem que seguir? Eu sou o único a esculhambar a Bauhaus, ficam com medo de dizer que é uma merda.” Oscar Niemeyer, em Guilherme Wisnik (org.), O risco: Lucio Costa e a utopia moderna. Rio de Janeiro: Bang Bang Filmes, 2003, p. 120.

[6] De 1995 a 1999, depois de 15 anos sem uso, a casa passou por um rigoroso processo de adaptação para abrigar a sede do Instituto. Ver Maria Luiza Dutra e Walter Arruda de Menezes, “Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro: projeto e obra de restauro, reforma e adaptação”, comunicação apresentada ao Docomomo, www.docomomo.org.br.

 

* Guilherme Wisnik é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e mestre em história pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, ambas instituições da Universidade de São Paulo. Publicou Estado crítico – À deriva nas cidades, entre outros livros.

 

Fotos de Marcel Gautherot – Acervo IMS

 

 

 

House of Walther Moreira Salles

Designed in 1948, the house of Ambassador Walther Moreira Salles (today, the Rio de Janeiro headquarters of the Instituto Moreira Salles) was inaugurated in 1951. Situated high up in Gávea on a site of approximately 10,000 square meters and surrounded by a verdant Atlantic forest (the Floresta da Tijuca), it is an authentic modern palacete – also indebted to the city’s traditional chácaras or country homes, such as the residence of Raimundo Ottoni de Castro Maya (1954-1957). That is to say that this is a monumental construction, both elegant and austere, planned to house a numerous family as well as a vibrant social life, marked by frequent receptions for illustrious guests. A wonderful record of this life appears in João Moreira Salles’ film Santiago (2007), in which, via the idiosyncratic figure of the Argentine butler Santiago Badariotti Merlo, we catch a glimpse behind the scenes of that time.

Olavo Redig de Campos, a diplomat’s son and the author of the design, had received a degree in architecture at Sapienza University in Rome and was then working at the Heritage Conservation Service at the Brazilian Foreign Ministry, designing Brazil’s embassies abroad. Though less known than other modern architects in Rio, such as Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira, Sérgio Bernardes, and the Roberto brothers, he was thus the ideal professional for the job at hand. The landscape design would be undertaken by Roberto Burle Marx.

Structured around a central patio, the house presents a studied contrast between Redig de Campos’ Italian classicism and the informalism of Burle Marx’s design – or, in other words, between civilization and nature. Closed in by a private wing on one side, and by social rooms on two sides and in the middle, this trapezoidal patio opens up to the garden with a pool and a view of the mountain via an open-air passageway near the end of the dining room at the west. This landscape is delicately covered by an undulating marquise – an element characteristic of Rio’s modern architecture – which, with a sensual air, caps the composition of the patio, entirely surrounded by an elegant external colonnade.

Seeking to set off the private section of the house, the architect protected the façade of that wing with vertical, moveable brise soleil, making it possible to protect the corridor leading to the bedrooms from both the sun and the eyes of visitors and servants. In the social area of the house, the walls (either glass, latticed, or formed by Venetian blinds) allude to a sense of permeability and movement, as befits a place of grand parties. With high ceilings, the social spaces are spread along three constructed bodies, with the dining room and two living rooms as smaller appendages of the principal volume through which one enters, comprising the servants’ quarters on one side, and the cloakroom, entrance hall, safe, library, a private living room (known as the “room of the azulejos”), and the terrace, on the other.

Standing out from the rest, the house’s main entrance strikes a pose that is more classical than modern, with two tall columns covered in marble against a wall painted in an earthy red tone, inspired by the famous Villa of Mysteries at Pompeii. The floor is tiled in Italian marble, Rosso Verona and Botticini, forming a geometric design of red-and-white lozenges that accentuates the diagonals and dissolves the solemn rigidity of the architecture. The same floor continues throughout the house’s ample spaces of social circulation, taking in the rooms in the form of covered galleries (loggias), closed in by sliding glass doors. In the living rooms and the dining room, the mosaic floor is changed out for hardwood, a material also used in the furniture of the library, decorated in English style. In the private living room, the walls and floor are covered with mosaic tiles and Portuguese blue-and-white azulejos, creating a synesthetic decorative effect in contrast with the dominant whiteness of the house. Decidedly, the varied use of luxurious materials reinforces the surprises one encounters throughout the house, creating an effect akin to what Le Corbusier defined as a promenade architecturale.

Water is also an important element in creating the house’s ambience, appearing in the fountain in the patio, the pool in the garden, and the reflecting pool between the dining room and the servants’ quarters, capped off by a sinuous azulejo mural with images of washerwomen, designed by Burle Marx.

While masterful Lucio Costa, in designing apartment buildings for Parque Guinle (1943-1952, also in Rio de Janeiro) had already demonstrated the possibility of achieving a perfect equilibrium between a modern architectural lexicon – linear bodies, pilotis, glass surfaces, brise-soleil – and historical and vernacular references such as trellises and cobogós, here, Olavo Redig de Campos builds on these teachings, adapting them to a more luxurious vocabulary. Hence the gigantic scale of the modules of the perforated elements that he uses (white-painted concrete blocks), which move away from their original function of providing shade and discretion and take on an eminently decorative character, one associated with monumentality.

While the modernist movement in architecture sought, in broad strokes, the production of standards in the name of a progressively anonymous and collective typology – hence its geometric abstraction – the Gávea house of Ambassador Walther Moreira Salles takes the opposite tack, using this language in the service of a singular, and above all personal, formalization. The most evident sign of this are the doorknobs of the house, all molded to fit the owner’s hand. The personal specificities of the movement and the solutions found in this case aside, however, one must recall that striking away from the functionalist norm was one of the hallmarks of modern Brazilian architecture, provoking both harsh critiques from Max Bill as to the “irrationalism” of the country’s architectural production, as well as Walter Gropius’ sincere lament when faced with Oscar Niemeyer’s house in Canoas (1952), that the house, while lovely, in his opinion could not possibly be multiplied. Similarly, for a number of reasons, the Moreira Salles residence was also born as a unique work. But its stately, palatial air lent it malleability, allowing it to survive into new times, now as a cultural institute.

Notes

[1] The residence of Raimundo Ottoni de Castro Maya, today the Museu Chácara do Céu, is an old country house that was redesigned in the modernist style in 1954, by Wladimir Alves de Souza, in the neighborhood of Santa Tereza.

[2] “This house, certainly the most luxurious of all those shown in this book, is an example of a style that has become increasingly rare nowadays: the palacete, meant to house not only the family, but frequent and grand receptions as well.” MINDLIN, Henrique. Arquitetura moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999. (originally published 1956)

[3] See FRANÇA, Renata Reinhofer. “Arquitetura cifrada: a casa da Gávea de Walther Moreira Salles.” Available at: www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.104/84. According to the author, this information was confirmed by Antônio Fernando De Franceschi in a phone interview.

[4] See BILL, Max. “O arquiteto, a arquitetura, a sociedade.” In: XAVIER, Alberto (org.). Depoimento de uma geração. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

[5] About this, Niemeyer comments: “Gropius came here. A mediocre architect, but he was a professor, he was intelligent and so on, he talked, he was educated, spoke well. But he went over to see my house in Canoas, and when he came out he said to me, ?Look, your house is very pretty, but it’s not multipliable.’ What a fantastically stupid thing to say! It was an utterly sinuous terrain, you’d never find another one like it. So you see how they thought wrongly, those Bauhaus people. Le Corbusier was the one who had the courage to say, ?It’s active mediocrity, they don’t know anything, they just want to create rules.’ Then everyone has to follow along? I’m the only one who will dress down Bauhaus, they’re afraid to say that it’s crap.” NIEMEYER, Oscar. In: WISNIK, Guilherme (org.). O risco: Lucio Costa e a utopia moderna. Rio de Janeiro: Bang Bang Filmes, 2003, p. 120.

[6] From 1995 to 1999, after 15 years of disuse, the house underwent a rigorous process of preparation in order to serve as the headquarters of the IMS. See: DUTRA, Maria Luiza and MENEZES, Walter Arruda de. “Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro: projeto e obra de restauro, reforma e adaptação.” Report presented to Docomomo. Available at: www.docomomo.org.br.

 

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