Parabéns pra você, Casablanca, nesse seu aniversário, virando setentinha. O lançamento foi em 26 de novembro de 1942, em Nova York, lembra? Nasceu prematuro, o parto normal marcado para 23 de janeiro do ano seguinte, coisa com o Oscar de 1944. Filme nas latas, a Warner Brothers não quis perder a bola levantada pela invasão aliada à Casablanca dominada pelos nazistas, em 8 de novembro, e montou, no grito, a tal exibição. Por aqui, naqueles tempos quando todos os cinemas davam para as calçadas, a moda de ficar falando avant-première encantava as plateias. Detalhe: Casablanca foi lançado no Brasil em 7 de dezembro de 1942, dois dias antes da Argentina e 47 do lançamento nos cinemas dos Estados Unidos.
Oscar? Levou três. Melhor filme, melhor diretor, o Michael Curtiz, e o de melhor roteiro, assinado pelos gêmeos Julius J. Epstein & Philip G. Epstein e Howard Koch. Maior mentira porque, feito nas coxas, Humphrey Bogart, Ingrid Bergman e os menos votados iam recebendo parte dele no dia da filmagem. Nessa balbúrdia, teve muito mais gente metendo o bedelho.
Max Steiner foi pré-selecionado pela melhor trilha sonora original. Aí ficou na maior bronca porque insistia em compor o tema de amor para Rick Blaine e Ilsa Lund. Levou um não pelas fuças austríacas e a que entrou no filme – e na história do cinema – foi As time goes by (Herman Hupfeld), interpretada pelo baterista Dooley Wilson, que não sabia tocar nem o Atirei o pau no gato. Foi salvo pelo pianista de verdade, Elliot Carpenter, escondido atrás de uma cortina no set. Em 1943, Max Steiner, maior dor de corno, fez saber, “As time goes by deve mesmo ter alguma coisa para atrair tanta atenção…”
Casablanca é o filhote da peça inédita Everybody Comes to Rick’s, de Murray Burnett and Joan Alison. Diz que todos conhecem a história, mas vai aqui a opinião bem simplificada do crítico Leonard Maltin no seu, ainda no papel, Movie and video guide 1994: “Tudo está certo nesse clássico da II Guerra Mundial que se passa numa Casablanca machucada pelo conflito. Tem o evasivo dono de um nightclub, Rick (Bogart), topando com a antiga paixão Ilsa (Bergman) e o marido dela, o lider da resitência Laszlo (Henreid), e tendo que administrar os esqueletos no seu armário. Rains está maravilhoso como o garboso chefe de polícia e ninguém canta As time goes by como Dooley Wilson”.
O primeiro elenco escolhido tinha George Raft no papel de Humphrey Bogart (Rick Blaine), a francesa Michele Morgan perdeu para Ingrid Bergman (Ilsa Lund), Otto Preminger no de Conrad Veidt (Major Heinrich Strasser) e Lena Horne em vez de Dooley Wilson (Sam). George Raft deu a maior força à carreira de Bogart ao recusar, pela ordem, seus papéis em Beco sem saída (37), Seu último refúgio (41), Relíquia macabra (41), Balas contra a Gestapo (41) e Casablanca (42). Bem feito.
Claude Rains, meio tampinha, teve que fazer algumas cenas com Ingrid Bergman em cima de pequenas rampas. Humphrey Bogart, longe de ser um jóquei, também passou por isso.
No tempo do domínio ditatorial dos grandes estúdios tudo era grana e lucro. Os rascunhos dos roteiros iam e vinham. Robert Buckner, roteirista e produtor da Warner, num memo para Hal Wallis, produtor de Casablanca, 6 de janeiro de 1942: “Não gosto da peça (Everybody Comes To Ricks) de jeito nenhum. Não acredito na história ou personagens. Esse Rick não passa de duas pitadas de Hemingway para uma de Scott Fitzgerald”.
O orçamento total de Casablanca foi de 878 mil dólares. A peça original levou 20 mil. Michael Curtiz, 73 mil e 400; Bogart, 36 mil e 667; Ingrid Bergman, Paul Henreid e Conrad Veight, 25 mil; Claude Rains, 22 mil e 3 mil foram gastos em publicidade.
A História gosta de crueldade. Como a Wikipédia, ignorou Casey Robinson, produtor, diretor e roteirista da WB. Só que, sem seus palpites, Casablanca não teria passado de um filme de guerra. Num memo para Hal Wallis, 20 de maio, 1942, palpita: “Minha impressão sobre o filme é que o melodrama é bem feito, o humor, excelente, mas a história de amor é deficiente”. E aí, cara, começa a desfilar as cenas que imaginou para Rick e Ilsa. Lágrimas e lencinhos, por favor. E, OK, acrescenta o corno do Laszlo. O primeiro e segundo encontro do casal, a ida dela ao apartamento dele onde confessa ainda estar perdidamente gamada e aí tudo que acontece entre os dois até o aeroporto quando Rick faz seu discurso de bom moço fodão, Ilsa se derrete toda até obedecer ao silencioso último chamado para o embarque num bimotor safado. Gostaram, assinou contrato por duas semanas de trabalho, levou 6 mil dólares e salvou o filme.
Não esquecer dos chatos de plantão, profissionais ou intelectuais. Como os psicanalistas focalizando no tema edipiano, poucas estrelas de então eram tão maternais como Ingrid Bergman! Umberto Eco não entendeu como plateias de estudantes italianos e americanos demonstravam o mesmo prazer diante “de um filme muito medíocre, com baixa credibilidade psicológica e pouca continuidade nos seus efeitos dramáticas”. Vai ver, foi ele quem espalhou que a frase final do filme, quando Rick Blaine diz para o capitão Louis Renault, “Louie, acho que isso é o início de uma bela amizade”, era coisa de viado – calma, na época gay era chamado assim.
Chegar aos 70, enxuto, o TV Guide jurando que, por ser o filme mais exibido na TV, é mais visto de todos os imemoriais tempos, maior cult de Hollywood, amado e visto até por quem nasceu depois da Segunda Guerra. Harvard mantém uma tradição que começou em 1957, meses depois da morte de Bogart, quando o Brattle Theatre, das vizinhanças, exibiu o filme. Até hoje, durante a semana das provas finais, boa parte do corpo discente vai ao cinema para cantar junto a Marselhesa e espocar rolhas do bom champanhe. Em 1969, em Play it again, Sam, Woody Allen transformou o culto em reconhecimento geral das gentes em todo o mundo.
Para quem encara a vida como eu, o melhor dessa fama, amor e glória é ver o desespero dos veggies, de quem corre solitário em volta de lagoas e parques, da turma prega-presa que proíbe ovo com bacon, fumar, beber não socialmente, também o bando de xiitas-moralistas diante (epa) do sexo, além de quem gasta as tardes em academias, suando naqueles modernos aparelhos de tortura medieval: Casablanca escancara o hoje politicamente correto proibido, todos jogam, tomam porres federais, fumam tragando, ignoram fidelidades matrimoniais, roubam documentos essenciais para fugir de governos totalitários, assassinam nazistas, sabe?, não consigo imaginar o almocinho do Rick Blaine com muita rúcula em volta de linguiças de frango ecológico, nenhuma gordura trans.
Pois é, hedonismo também é passaporte seguro para se chegar aos 70 em pleno gozo de todas as faculdades ditas proibidas. Não é mesmo, Casablanca?
* João Luiz de Albuquerque é jornalista. Em 1987, o Festival do Rio exibiu uma versão remontada por Albuquerque do final do filme (veja abaixo).
Trecho do livro Casablanca: as times goes by…, comemorativo dos cinquenta anos do filme, que menciona a versão recriada por Albuquerque:
“Rick finalmente conquista Ilsa, ainda que tenha levado 45 anos para conseguir. O fã brasileiro, João Luiz Albuquerque, desmontou uma cópia do filme e a reeditou ao seu gosto, completo com um final onde Ilsa não embarca no avião com Victor. Essa versão editada e não-autorizada do filme teve uma exibição especial e privada durante o Festival de Filme do Rio, em 1987. Leva ainda um dos mais incomuns créditos na história do cinema: ‘Copyright infringements by Joao Luiz Albuquerque’.”