Costuma-se dizer que as boas reportagens de polícia são permeadas pelas contradições sociais. O mesmo se pode dizer dos bons livros e filmes policiais, ou que tangenciam o gênero: expõem de modo cru e dramático as fraturas de toda uma sociedade. É o caso de Chamada a cobrar, de Anna Muylaert. No registro da narrativa ficcional realista, é um filme tão iluminador quanto O som ao redor, o que não é dizer pouco.
A diretora, que remontou aqui em formato de longa-metragem o telefilme Para aceitá-la, continue na linha, feito para a TV Cultura em 2009, parte de um fato quase banal em nossas grandes cidades: um falso sequestro, desses que buscam extorquir dinheiro e créditos de celular de um parente desesperado. A vítima, no caso, é uma senhora paulistana de classe média alta, Clarinha (Beth Dogan), convencida por um bandido anônimo e oculto de que uma das filhas está em poder de sequestradores.
Não cabe antecipar aqui os passos do calvário que será cumprido por Clara, mas apenas observar que, se em O som ao redor as tensões sociais e culturais se concentravam em poucas ruas de um bairro de elite recifense, aqui a protagonista é forçada por vias tortas a sair do casulo de conforto e boa consciência (é uma mulher civilizada e cortês, preocupada com os pobres e o meio ambiente) e se deslocar horizontal e verticalmente por um país repleto de mazelas.
O modo como Anna Muylaert conduz o drama atesta seu notável amadurecimento como roteirista e diretora, revelando um senso preciso de ritmo e de atmosfera, a par da sutileza na observação de detalhes significativos dos pontos de vista psicológico, cultural e social.
Do equilíbrio ao caos
As primeiras imagens mostram placidamente, em planos fixos e quase silenciosos, o mundo da protagonista: o bom gosto e a elegância discreta de sua ampla casa, a relação cordial com a doméstica Dalva (a quem, entretanto, recorre a todo momento para as menores necessidades), o tratamento carinhoso e zeloso dirigido às filhas.
Esse equilíbrio se rompe bruscamente com o telefonema do bandido. Os planos passam a ser instáveis e “sujos”, com a imagem sempre parcialmente obstruída por uma porta ou um móvel, uma alternância nervosa de zooms para frente e para trás, uma câmera de movimentos trôpegos. O drama materializado em linguagem.
Gaguejante, à beira de um colapso, Clarinha sai de carro, seguindo as ordens ameaçadoras da voz anônima carregada de palavrões, gírias e forte sotaque carioca. Nessa saída da paz doméstica para o mundo, a cidade se apresenta mais inóspita e hostil do que nunca, com suas avenidas e viadutos indecifráveis, seus onipresentes automóveis e caminhões. As ligações caem repetidas vezes, a angústia cresce a cada mensagem da operadora de “chamada a cobrar”. No auge do desespero da protagonista, uma sacada de montagem: sob a tensa conversa, imagens da vida que segue: uma varredora de rua conversando com uma transeunte, uma mulher com um carrinho de bebê, um passarinho ciscando na grama. O mundo é indiferente ao vórtice individual.
Se é necessário louvar a extraordinária atuação de Beth Dougan, perfeita em todas as nuances, da fragilidade à fúria, cabe notar também a eficácia enganosamente naturalista das falas, que exploram com um humor próximo do sarcasmo o abismo social e cultural entre os interlocutores. Tão engraçada quanto a tentativa desajeitada de Clarinha de usar o vocabulário do falso sequestrador, na ânsia de mostrar empatia e criar um terreno comum de diálogo.
Pode não parecer à primeira vista, mas Chamada a cobrar diz muito sobre este país conflagrado e confuso que estamos vendo à nossa volta.
Poeta das fraquezas humanas
Começa hoje no CineSESC, em São Paulo, uma retrospectiva completa da obra de um dos maiores cineastas do século passado, Billy Wilder. É uma mostra de importância só comparável à que exibiu praticamente tudo de Howard Hawks em Belo Horizonte, há alguns meses. Aqui, a programação completa.
Aliás, Wilder foi uma espécie de discípulo extraviado de Hawks, para o qual escreveu roteiros memoráveis (Bola de fogo, por exemplo). Seu outro grande mestre foi Ernest Lubitsch. O cinema de Wilder é um pouco uma mistura dos dois: a objetividade narrativa sem “gorduras” do primeiro, a sutileza da observação psicológica e moral do segundo.
Mais do que um fino cultor do duplo sentido, como Lubitsch (para quem também fez roteiros), Wilder foi um observador ferino da natureza humana, sobretudo de suas fragilidades. Seja na comédia (gênero ao qual deu obras-primas como Quanto mais quente, melhor e O pecado mora ao lado), no policial noir (Pacto de sangue) ou no drama (Crepúsculo dos deuses, Farrapo humano), seus personagens são sempre pegos como que no contrapé, traídos por desejos nem sempre lícitos, pelas fraquezas da carne e do espírito.
Com poucas exceções (como no cáustico A montanha dos sete abutres), Wilder não costuma julgar suas criaturas, mesmo as que cometem os atos mais vis. Coloca-se à altura delas, nunca acima, compartilhando sua condição ao mesmo tempo falha e grandiosa. Parece nos dizer: ninguém é santo, a vida é uma droga, mas a gente se diverte. Pois bem, divirtam-se.