O passageiro desembarca na Gare du Nord, em Paris, e se dirige ao ponto de táxi. Quando chega a sua vez, cabe-lhe o carro de um motorista jovem, gordo e careca, com cara redonda, que fala francês com o sotaque carregado da periferia, como o marginal de uma série policial de televisão. É uma caricatura ambulante. O motorista dá a partida.
Passageiro: vou para a rua du Bourg Tibourg, no Marais, por favor.
(o motorista digita o nome da rua errado no GPS, enquanto dirige)
Motorista: Rua do quê?
Passageiro: Do Bourg Tibourg.
Motorista: Onde fica?
Passageiro: No Marais.
Motorista: Não estou achando.
Passageiro: (soletra o nome da rua; o GPS localiza a rua) Você não é daqui? Não conhece Paris?
Motorista: Conheço, mas o Marais não é o meu negócio. Você trabalha com moda?
Passageiro: Não. Por quê?
Motorista: Você sabe que o Marais é um bairro de gays?
Passageiro: É?
Motorista: Você é gay?
Passageiro: Sou.
(Mantendo uma das mãos no volante, o motorista se vira para trás e olha para o passageiro, com uma expressão de felicidade e escárnio.)
Motorista: E, se não trabalha com moda, trabalha com o quê?
Passageiro: Sou jornalista.
Motorista: Nunca vi jornalista gay.
Passageiro: Nem todo heterossexual é motorista de táxi.
Motorista: Pego muito jornalista. Ninguém vai pro Marais. Vão todos pra Défense.
Passageiro: Lá só tem escritório. Então, devem ser jornalistas de economia.
Motorista: E você é jornalista de quê? De moda?
Passageiro: Não. Depende da situação. Se você for correspondente, por exemplo, vai ter que cobrir tudo, economia, política.
Motorista: Você entende de economia?
Passageiro: Não.
Motorista: E como é que pode escrever sobre economia?
Passageiro: Não escrevo. Mas, numa situação extraordinária, quando você está trabalhando sozinho para um jornal, em outro país, por exemplo, tem que escrever.
Motorista: Você é de onde?
Passageiro: Brasil.
Motorista: Aqui, cada jornalista faz uma coisa.
Passageiro: É o ideal.
Motorista: Se você quiser, eu te levo a lugares muito piores que qualquer favela brasileira, aqui mesmo, em Paris. Nada a ver com Marais, Saint-Germain.
Passageiro: Obrigado. Eu conheço.
Motorista: Paris tá cheia de favela. É só corrupção, na economia, na política. Veja só as revoluções no Magreb [norte da África]. Agora, a França quer ensinar como é que se faz democracia. Querem impor o modelo deles. E olha só o modelo deles. É tudo por causa da grana, pra botar a mão no petróleo. Cada um tem a sua democracia. Uma democracia é diferente da outra. Se os tunisianos querem votar nos islâmicos, a decisão é deles. Quem disse que não pode ter democracia islâmica?
Passageiro: Claro. Você é de onde?
Motorista: Daqui mesmo.
Passageiro: E os seus pais?
Motorista: Da Argélia. As pessoas ficam metendo o bedelho na vida dos outros. Dizendo como é que tem que ser, como é que tem que fazer, que é isso e aquilo. Cada um faz do seu jeito.
Passageiro: Claro. Ninguém tem que ficar se metendo na vida dos outros. Cada um faz como quiser com a sua vida, contanto que não cause mal aos outros. É esse o problema. E é por isso que existem as leis. Me disseram que, se eu quiser me casar no Egito, por exemplo, tenho que me submeter a uma igreja, qualquer igreja, pode ser sinagoga, igreja católica etc. Pra se casar, você tem que acreditar em deus, qualquer deus, mas tem que acreditar. E que merda é essa de obrigar as pessoas a ter uma religião, qualquer que seja? E se eu quiser me casar sem acreditar em deus nenhum? E tem mais: se você for gay, ainda corre o risco de ser preso. E, do outro lado da fronteira, no Sudão, pode ser condenado à morte. É isso aí. Você está coberto de razão. O problema é as pessoas se meterem na vida dos outros.
O motorista só volta a abrir a boca para dizer que chegaram e o passageiro já pode descer, estão no Marais, bairro de gays e da moda.
* Na imagem da home que ilustra este post: vista da rua du Bourg Tibourg, no Marais, em Paris (fonte: Google Maps)