É difícil escrever sobre o arquivo de Drummond sem começar lembrando o arquivista nato que foi o poeta, assunto de que já tratei aqui mesmo, em post anterior.
Dessa vez, nos itens por ele organizados que chegaram ao Instituto Moreira Salles em fevereiro deste ano, ao lado dos 4 mil livros de sua biblioteca pessoal, encontrei uma caixa de papelão criteriosamente anotada em um dos lados – era assim que ele ordenava parte do material. Entre outras indicações do conteúdo, como se vê na foto a seguir, lê-se: A Voz dos que Não Falam.
Trata-se de um jornaleco artesanal, de oito páginas, mimeografado, que exibe, na primeira página, o crédito:
Direção:
Lya Cavalcanti
Carlos Drummond de Andrade
Quem não soubesse o que Drummond era capaz de fazer por amor aos animais deve ter se espantado de ver seu nome na direção do periódico modesto que circulou a primeira vez em 4 de outubro de 1970, dia de São Francisco, quando, no Rio, se realizava a bênção dos animais na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema.
Frequentada por cães das mais variadas raças, ali se encontravam desde legítimos vira-latas aos representantes mais racés, todos para serem abençoados pelo santo “papo-firme”, como o poeta nomeia São Francisco num verso de “Conversa com o santo”, estampado na primeira página do no1 do Voz.
Muita gente deve ter duvidado de que o coeditor era mesmo, naquele ano de 1970, o maior poeta vivo do Brasil, que, com a amiga, a jornalista Lya Cavalcanti, lançava aquela publicaçãozinha minguada. Não só era verdade como também para a dupla constituía empreitada seriíssima. Fermentava havia alguns anos nas cabeças dos dois amigos, que já tinham mesmo pensado em fazer, juntos, um programa sobre bichos na então PRA-2, Rádio Ministério da Educação, onde Lya trabalhava.
Drummond e Lya Cavalcanti foram apresentados um ao outro pelo também jornalista e poeta Odylo Costa, filho, em 1947, quando ela chegou de Londres, onde fora cronista da BBC durante a Segunda Guerra Mundial, transmitindo impressões sobre o cotidiano na capital inglesa. Anos depois, foi convidada para fazer, na Rádio Ministério da Educação, um programa radiofônico diário chamado Dois dedos de prosa, de apenas sete minutos, durante os quais podia abordar qualquer assunto. Apaixonada por animais como era, não perderia a oportunidade de tratar de temas relativos aos bichos.
Encontrou para isso um parceiro. Na expressão dela, o “capanga”. É que naquele mesmo ano de 1954, Drummond estreou no Correio da Manhã com a crônica “A pipa”, publicada em 9 de janeiro. Só deixaria a colaboração naquele jornal em 1969, quando se transferiu para o Jornal do Brasil. Tanto em um como no outro, o cronista, às claras ou de forma velada, sustentou com a amiga uma parceria fiel e calorosa pelo bem dos animais. Muitas de suas crônicas daquele ano de 1954 pretendiam ser reforço às radiofônicas de Lya. Reforço ou eco. Ele no Correio e Lya na PRA-2 faziam uma espécie de dobradinha oral e escrita pela causa dos animais.
Assim, em “Gente, bicho”, de 30 de julho daquele ano, Drummond advertia belamente que “amor não distingue, antes se propaga em círculos concêntricos; amar os animais é uma espécie de ensaio geral para nos amarmos uns aos outros”. E não negou apoio à campanha pela erradicação da raiva em “Sem vacina”, de 26 de novembro do mesmo ano. Exercia uma fidelidade ativa e, sobretudo, comprometida, como em “O santo; os bichos”, de 3 de outubro de 1957, em que aborda o aspecto jurídico da vida do animal.
A cumplicidade de 1954 foi tão envolvente, que no fim do ano Drummond propôs a Lya fazerem um programa sobre bichos, ainda na Rádio Ministério. Ela, que não aprendera nada sobre pontualidade no período londrino, reconhecia diante de todos sua irrestrita incapacidade de cumprir prazos. E como não ignorava o estilo organizado do poeta, teve medo do compromisso. Enviou-lhe carta com as suas justificativas:
Minha ideia (se o seu orgulho permitir) é que eu ajude você de alma e coração, mas que o programa
seja inteiramente seu. Se for falado por nós dois e possivelmente por mais gente, como eu acho que
devia ser, pois isso valorizaria enormemente a coisa, meu nome pode aparecer como participante,
conforme apareceu da outra vez. […] Mas sinceramente eu preferia não sentir a responsabilidade de
ganhar dinheiro, ou ter o nome como coautora do programa, para depois você ficar com todo o
trabalho, ou então subordiná-lo à minha preguiça, ou carência de imaginação.
Não foi por essa negativa de Lya que a parceria se desfez. Mesmo depois que ela saiu da PRA-2, Drummond continuou a ajudá-la nas campanhas, e na crônica “SUIPA”, de 13 de junho de 1957, ele escreveu:
Recusei mesmo filiar-me à Academia de Letras do Café e Bar Bico, no Posto 6. Mas à SUIPA eu pertenço
com muita honra e gosto. Sou candidato ao Conselho Consultivo e prometo aconselhar sempre com
sabedoria, prudência e justiça, depois de ouvir, é claro, meus queridos conselheiros particulares:
Puck (um cãozinho velho) e Inácio (um gatinho novo).
O nome que Drummond escolheu para o seu cão é de uma personagem de A Midsummer Night’s Dream, que se define com a merry wanderer of the night. Quanto a Inácio, aparece em “Imagens particulares: Inácio: onde?”, de 30 de julho de 1959, que, com pequenas modificações, recebeu o título de “Perde o gato”, incluída em Cadeira de balanço. Termina com esta arguta observação da psicologia felina:
Se Inácio estiver vivo e não sequestrado, voltará sem explicações. É próprio do gato sair sem pedir
licença, voltar sem dar satisfação. Se o roubaram é homenagem a seu charme pessoal, misto de
circunspeção e leveza; tratem-no bem, nesse caso, para justificar o roubo, e ainda porque maltratar
animais é uma forma de desonestidade. Finalmente, se tiver de voltar, gostaria que o fizesse por conta
própria, com suas patas; com a altivez, a serenidade e a elegância dos gatos.
Se anos atrás Drummond propusera a Lya fazerem um programa sobre bichos, em 1970 ela o desafiou a fundar um jornal que manifestasse a opinião dos animais, a qual ela mesma se encarregaria de traduzir. Desafio em quadrinha irreverente:
Please, meu caro poeta
Deixa de ser um empata
E com seu dedo de esteta
Faz o que pede esta chata
Drummond não só aceitou o convite, com entusiasmo, como também em 8 de outubro de 1970, no Jornal do Brasil, quatro dias depois do lançamento do A Voz dos que Não Falam, divulgava a publicação na crônica de mesmo título:
Convidado a partilhar da direção do órgão, topei com assanhamento. […] Lya entende, e com ela muitos
filósofos, que enquanto não souber conviver com os bichos, assumindo a responsabilidade de
protegê-los e respeitá-los em sua condição de seres vivos, o homem está longe de merecer o
nome de civilizado.
Lya Cavalcanti não fazia por menos: o jornalzinho tinha pretensão de ser “o The New York Times dos bichos pobres”, afirmava ela. Publicava minirreportagens de casos caninos ou felinos e uma parte opinativa que não fugia de temas complexos relativos aos animais, como a eutanásia. Àquela altura, Lya, tradutora juramentada de prestígio, abandonava as funções para se dedicar integralmente aos bichos, mas ainda não dava conta dos prazos.
Não estava só com Drummond nessa paixão. O amor por animais é tão abundante entre intelectuais que o mineiro Eduardo Frieiro ocupou-se só de escritores animalistas num pequeno ensaio em que conta a deliciosa história da longa amizade de Francis de Miomandre com um camaleão. Dizia o escritor francês que seu camaleão mudava de cor, não só por mimetismo, como também por afeição; era sentimental. E que, ao ser apresentado ao poeta Paul Valéry, o réptil ficou verde-esmeralda. “Pôs o fardão acadêmico”, observou Miomandre.
Mas voltemos à publicação. A ideia era de que o Voz fosse mensal foi por água abaixo: Lya, com os adiamentos de sempre, não achava tempo para cumprir o cronograma. Como o número 2 do jornalzinho não tivesse saído em novembro, falhando assim a programação logo no início, saíram, em dezembro, os números 2 e 3.
Nem assim Drummond se conformou com a falta. Na crônica “Um jornal diferente”, do Jornal do Brasil de 12 de janeiro de 1971, ele, que levava o Voz muitíssimo a sério, não esconde o desapontamento com o atraso do periódico, embora se esforçasse por justificá-lo:
A Voz dos que Não Falam, um jornal muito “bacana”, órgão oficioso dos bichos ditos irracionais,
editado pela sra. Lya Cavalceanti com a conivência deste cronista. Dizia-se mensal, o primeiro número,
saído em outubro, fez sucesso na praça General Osório, e depois…
Lya desculpava-se com o amigo em bilhetes carinhosos, que começavam por “Coacatu [bom dia, em tupi], meu querido”. Considerava “presente régio” para a causa dos animais as crônicas que Drummond lhes dedicava. Declarava-se envergonhada por não cumprir os prazos, refazia promessas, atribuía a demora a “motivo de cachorro”, mas meses foram se passando e o no 4 do Voz só sairia em 4 de outubro do ano seguinte, 1971.
Daquela vez não houve charme ou quadrinha de Lya que desse jeito: o coeditor perdeu a paciência e desistiu da parceria. No exemplar da coleção do bibliófilo Plínio Doyle, que o recebeu das mãos do próprio Drummond, lê-se a anotação do poeta, metódico infalível que fez questão de registrar, a mão: “Este número já saiu sob a direção exclusiva de Lya Cavalcanti. C.D.A.”.
Se não aguentou os atrasos de Lya, continuou a apoiá-la, a ela e aos bichos, como fez em “Os animais, a cidade”, de 7 de outubro de 1971, em que noticia a bênção dos animais daquele ano, ao lado de carinhosas referências à amiga. O no 8 do Voz encerraria a regularidade de publicação anual, que passaria a ser esporádica e já sem indicação de número. Com o tempo, perdeu também o formato de jornaleco. Mais parecia um relatório, não fosse um ou outro texto de Lya, carregado da força de suas opiniões.
Quanto a Drummond, homenageou a amiga inúmeras vezes. O leitor de hoje talvez não saiba que é ela a personagem de “L.C.”, de 2 de junho de 1960, ou de “Lya, Odylo”, de 31 de março de 1965, e de tantas outras crônicas. Em nenhuma, a louvação foi tão alta como em “Lya, a louca admirável”, de 17 de janeiro de 1976, ao considerar a amiga possuidora “da chama do amor universal, de que deriva seu amor aos animais”.
Os dois amigos não estiveram juntos apenas na luta pela causa dos bichos. Naquele mesmo ano de 1954 em que fizeram a dobradinha, protagonizaram, também na PRA-2, o “Quase Memórias”, programa que constou de uma série de oito sessões de deliciosas entrevistas, realizadas aos domingos e anos depois reunidas em livro sob o título de Tempo, vida, poesia: confissões no rádio. Ninguém entrevistou o poeta com tanta ousadia, com tanta graça, nem ele jamais se mostrou tão afetivo quanto nesse papo ricamente despretensioso.
Em 17 de agosto de 1987, quando a “indesejada das gentes” levou Drummond, o Voz, que havia muito agonizava, ressurgiu com um artigo de Lya.
[…] mas eu sempre o chamei de “meu capanga” porque ele estava invariavelmente a postos para apoiar,
prestigiar e endossar qualquer movimento que pretendesse melhorar de qualquer forma a condição do
animal neste mundo. E agora tenho a impressão de pisar em falso sem as opiniões e encorajamentos
de quem durante trinta anos nunca faltou a uma briga por bicho.
Lya Cavalcanti morreu em 17 de novembro de 1998. Drummond fora profético: dizia à amiga que ela faria o necrológio dele, e não o inverso.