Estrela da manhã, o diamante da biblioteca de Drummond

Literatura

20.07.11

Entre os livros mais cobiçados da biblioteca de Carlos Drummond de Andrade, desde fevereiro sob a guarda do IMS, distingue-se um exemplar de Estrela da manhã, de Manuel Bandeira. O livrinho, que não passa das setenta páginas, foi publicado em 1936, quando o poeta de Pasárgada completava 50 anos.

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Ao contrário do que se poderia esperar, nem a data de aniversário, redonda e notável, nem a consagração que o poeta já gozava desde o lançamento de Libertinagem, em 1930, facilitaram a publicação desse seu quinto livro. Não fosse o papel presenteado pelo amigo Luís Camillo de Oliveira Netto, mineiro de Itabira como Drummond, e o apoio financeiro de outros cinquenta companheiros (imagem acima) que fizeram uma subscrição para financiar a obra, talvez os 28 poemas não tivessem sido coletados em Estrela da manhã, que tem ilustração de Santa Rosa na capa e na folha de rosto, além de reprodução fotográfica de um desenho de Bandeira a fusain, feito por Portinari.

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Esse histórico confere alguma singularidade ao livrinho, mas o que faz dele o sonho dos bibliófilos é o fato de a edição, de 1936, como já foi dito aqui, ter apenas cinquenta exemplares. Muitos desses já deixaram as estantes de seus donos originais e hoje envaidecem felizardos colecionadores.

Na “Cronologia de Manuel Bandeira escrita por ele mesmo”, publicada no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em 17 de abril de 1966, quando o poeta fez oitenta anos, reproduzida em vários livros, ele afirma que a edição foi de 47 exemplares porque o papel não deu para os cinquenta planejados. Contudo, na sua autobiografia literária, Itinerário de Pasárgada, de 1954, ele declara que a edição de 57 (e não 47) exemplares anunciada no livro teve, na verdade, apenas cinquenta, pela insuficiência do papel.

Tudo leva a crer que a segunda seja a informação correta, porque no colofão de Estrela da manhã lê-se a referência a “esta edição de 57 exemplares, numerados e assinados pelo autor“. Certamente desses 57 saíram apenas os cinquenta, como está no Itinerário. Sendo assim, a lista de subscritores, com meia centena de nomes, garantiu a cada um deles um livro, e Drummond, assinante 27, ficou com o exemplar de número correspondente – hoje um pequeno diamante na sua biblioteca.

  

Na encadernação do livrinho, o poeta de A rosa do povo esbanjou papel: são dezoito páginas em branco, sem qualquer anotação, acrescidas às originais.

 

Com mais ou menos páginas, a história desse livro começa mesmo com uma paixão. Conta Fernando Morais em Chatô: o rei do Brasil, a vida de Assis Chateaubriand,[1] que Bandeira se inspirou em Maria Henriqueta Barrozo do Amaral, filha do juiz Zózimo Barrozo do Amaral, para escrever o poema “Estrela da manhã”, que dá título ao livro. Jovem e linda, ela encantava a todos, e o poeta, que não teria escapado ao fascínio de sua beleza, nutriu por Maria Branquinha, como era conhecida a moça, uma “profunda porém prudente e silenciosa paixão”. No futuro, ela se casaria com o jornalista e empresário de comunicação Assis Chateaubriand, conta ainda Fernando Morais.

Para justificar um verso do poema [“com os gregos e com os troianos”] Bandeira contou sobre seu processo de criação na crônica “Confissões a Edmundo Lys”, incluída em Andorinha, andorinha:

Costumo plagiar descaradamente os achados inconscientes de amigos e conhecidos que não fazem poesia. Certa vez perguntaram a um amigo meu que não é poeta: ?Como vai Fulana?’ Era uma amante do meu amigo, bastante enganado por ela. E ele respondeu: ?Anda por aí, dando a gregos e a troianos!’ Refleti que essa maravilha não podia ficar perdida: meti-a no meu poema ?Estrela da manhã’. O plágio pode e deve admitir-se quando o fazemos para recolher pérolas anônimas ou reforçar o valor de um elemento insuficientemente aproveitado por outro poeta“. [2]

[…]

Pecai com os malandros

Pecai com os sargentos

Pecai com os fuzileiros navais

Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos

Com o padre e com o sacristão

Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

[…]

Explicado o emprego do clichê, volto para um verso do mesmo poema que sempre me intrigou: “Com o leproso de Pouso Alto”. A gravidade do som e o mistério que se instala e se encaixa tão bem na sequência de desespero do Eu poético, que ao longo do poema revela o desespero da busca e o desejo de ter de volta a sua estrela da manhã, ainda que “pura ou degradada até a última baixeza”, me causavam forte emoção.A surpresa comovente foi quando, no fim da década de 1990, li um texto, até então inédito, do poeta e prosador Ribeiro Couto, romancista de Cabocla. Couto foi promotor na cidade mineira de Pouso Alto na década de 1920, onde recebeu o amigo Manuel Bandeira, que ali passou alguns verões. O texto de Ribeiro Couto é, na verdade, um relato memorialístico que incluí em Três retratos de Manuel Bandeira, publicado pela Academia Brasileira de Letras em 2004. Entre lembranças deliciosas de episódios protagonizados pelos dois amigos naquele Consulado da Melancolia, como Couto preferia chamar Pouso Alto, ele conta – e isso eu li com grande emoção – que Bandeira conheceu ali um “leproso que vinha aos sábados, a cavalo, estender a mão inflamada à caridade dos munícipes”.

Estava assim explicado o mistério da origem do verso. O mistério poético, esse prescinde de esclarecimentos e continua a existir unicamente como marca da grande poesia.

O convívio de Manuel Bandeira com Ribeiro Couto, aliás, se refletiria em outros momentos da poética bandeiriana, entre os quais nos desalentados e populares versos do poema “Andorinha”. Disse o autor do poema em entrevista a Paulo Mendes Campos, intitulada “Reportagem literária”, que se inspirou nas andorinhas que pousavam nos fios telegráficos dos postes em frente à casa de Ribeiro Couto, em Pouso Alto:

[…]

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!

Passei a vida à toa, à toa…

[…]

Há naturalmente outros livros de Manuel Bandeira na biblioteca de Drummond, no conjunto que veio para o IMS. Nenhum tão importante quanto Estrela da manhã. São edições comuns, várias antologias, mas no ensaio De poetas e de poesia, publicado pelo Serviço de Documentação do então Ministério da Educação e Cultura, lê-se a dedicatória: “A Carlos, poeta da minha inveja./ Manuel/ Rio 1954”.

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É sabida a admiração mútua entre os dois bardos. Bandeira, dizendo-se poeta menor, declarou mais de uma vez a superioridade de Drummond, chamando-o “poeta das grandes abstrações”, e este se irritava quando alguém o julgava maior que o amigo – contava a jornalista Lya Cavalcanti, querida amiga do poeta mineiro.

A amizade e admiração recíprocas inspirou composições como a “Ode no cinquentenário do poeta brasileiro”, com que Drummond louvou o amigo no seu aniversário em Homenagem a Manuel Bandeira, edição de 201 exemplares que contém estudos, comentários e impressões sobre o poeta de Pasárgada, de autoria de 33 entre os mais prestigiosos escritores modernos do Brasil. Foi publicada no mesmo ano de 1936 em que saiu Estrela da manhã, e abre com o magnífica ode de Drummond, de que destaco os seguintes versos:

            Tua violenta ternura,

tua infinita polícia,

tua trágica existência

no entanto sem nenhum sulco

exterior – salvo tuas rugas,

tua gravidade simples,

a acidez e o carinho simples

que enxergo no teu retrato,

que capturo nos teus poemas,

são as razões por que te amamos

e por que nos fazer sofrer…

Decerto tu não sabias

que nos fazes sofrer…

É difícil de explicar

esse sofrimento seco,

sem qualquer lágrima de amor,

sentimento de homens juntos,

que se comunicam sem gestos

e sem palavras se invadem,

se aproximam, se compreendem

e se calam sem orgulho.

[…]

és tu mesmo, é tua poesia,

tua inefável e pungente poesia,

ferindo as almas, sob a aparência balsâmica,

queimando as almas, fogo celeste, ao visitá-las;

é o fenômeno poético, de que te constituíste o misterioso portador

e que vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos mundos, das amadas

[exuberantes e das situações exemplares que não suspeitávamos.


[1] Ver Chatô: o rei do Brasil, a vida de Assis Chateaubriand, p. 160.

[2] “Confidências a Edmundo Lys”, de 29/04/1946. In: Andorinha andorinha, p. 43.

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