Eadweard Muybridge

Em cartaz

13.09.16

O filme Eadweard Muybridge, zoopraxógrafo (EUA, 1975. 59’), parte da mostra Hollywood e além: o cinema investigativo de Thom Andersen, será exibido neste domingo, dia 18/9, em sessão apresentada pelos curadores Aaron Cutler e Mariana Shellard. Em cartaz no cinema do IMS-RJ de 15 a 21 de setembro, a mostra conta com 19 filmes entre longas e curtas-metragens que celebram a obra de Thom Andersen, um dos mais importantes cineastas americanos da atualidade, e de artistas vinculados a ele. 

Eadweard Mubridge

Eadweard Muybridge realizou uma série extensa de fotografias durante a década de 1880, com o objetivo de analisar e compilar uma anatomia completa do movimento humano. Essas fotos sequenciais de ações simples foram animadas no zoopraxiscópio [1] de Muybridge para produzir as primeiras imagens reais em movimento. Em cada uma dessas sequências, um homem nu ou uma mulher nua realizam uma ação simples diante de um fundo preto, atravessado por linhas brancas, com intervalos de cinco centímetros, formando, assim, uma grade branca em fundo preto. As sequências são geralmente fotografadas por um conjunto de três grupos de câmeras, simultaneamente posicionadas, para permitir visão lateral, escorço frontal e traseiro. Essas sequências da figura humana em movimento surgiram a partir do trabalho anterior de Muybridge, fotografando cavalos em vários tipos de movimento – passo, trote, galope curto e galope pleno – para Leland Stanford.

Como Terry Ramsaye aponta no livro A Million and One Nights (1926) – uma história do cinema que contém um ataque extenso contra o que Ramsaye chama de lenda de Muybridge – Muybridge se envolveu nos estudos do movimento acidentalmente. Ele era um fotógrafo convencional de São Francisco quando Leland Stanford pediu-lhe, em 1872, para colaborar em um experimento. Para obter um veredito favorável em uma disputa, Stanford queria provas científicas de que, em algum momento no trotar de um cavalo, todas as quatro patas, simultaneamente, não tocavam o chão. Muybridge deveria fotografar Occident, o cavalo de Stanford, em movimento; os primeiros esforços, porém, não foram bem-sucedidos, já que a placa úmida de colódio que usou não permitia uma exposição suficientemente rápida para evitar borrões. Mas em 1877, tirando vantagem dos avanços tecnológicos, Muybridge teve sucesso e conseguiu uma sequência de imagens nítidas e, aos 47 anos de idade, encontrou a obra de sua vida. Stanford divulgou amplamente essas imagens, e sua fama permitiu a Muybridge obter um cargo na Universidade da Pensilvânia, onde, com verba e uma estrutura praticamente sem limites, e aparentemente com completa liberdade, fez seus mais importantes trabalhos. Lá fotografou várias outras espécies animais, que parecia escolher especialmente pela eufonia dos nomes: o guanco, o babuíno chacma, a gazela-dorcas, o oryx, o gnu de rabo branco, e outros. Ali também começou a fotografar homens e mulheres nus.

As legendas que Muybridge colocou em suas sequências indicavam claramente a natureza de seu trabalho, tais como “Mulher sentada em cadeira segurada por companheiro em pé, fumando cigarro” (o complemento está tipicamente fora do lugar correto; é a mulher sentada que está fumando) ou “Mulher virando-se e alimentando cão” ou “Mulher virando-se e segurando jarra de água para companheiro ajoelhado” ou “Mulher virando-se e subindo escadas” – conotam tratamentos definitivos de ações simples: caminhar, correr, erguer, levantar algo, arfar, jogar, pegar, pular, escalar, arrastar, chutar, dançar, virar, sentar, ajoelhar, deitar-se, levantar.

Em “Mulher virando-se e subindo escadas”, uma garota de aproximadamente 22 anos vira-se em um arco de 180 graus e sobe uma plataforma de quatro degraus. Pelos padrões atuais de sensualidade feminina, as pernas e quadris são desproporcionalmente grandes, os seios são pequenos e curiosamente murchos. Cada mama cobre uma área apenas equivalente a seus pelos pubianos. No primeiro painel de visão frontal, em que o corpo da moça está diante da câmera, essa massa escura de pelos pubianos forma um triângulo equilátero perfeito, mas quando ela se vira para subir os degraus esse triângulo preciso se alonga até ser ocultado pelo quadril esquerdo no quinto painel. Tudo nessas imagens é claro e sem ambiguidade, exceto pela expressão facial da garota, que a mim parece uma mistura de vontade e confusão. Como um todo, é bela.

“Mulher virando e segurando jarro de água para companheira ajoelhada” é reproduzida apenas em visão lateral, de modo que as duas mulheres fiquem circunscritas no estreito espaço pictórico em que habitam. São mulheres são mais velhas e de aparência mais severa do que a garota que se vira e sobe as escadas. Enquanto se aproximam, uma segurando o jarro, a outra apoiando-se em um joelho, as ações ganham o aspecto de um drama de significado desconhecido, que se aglutina, formando uma cena estática, e depois se decompõe enquanto as duas mulheres partem juntas, rindo ou sorrindo, talvez por causa de alguma quantidade de água derramada do jarro.

Essas duas sequências apresentam imagens contrastantes de mulheres nuas, mas foram ambas fotografadas com os mesmos planos de fundo, insistentemente bidimensionais, e de acordo com o mesmo sistema congelado para que, superficialmente, pareçam idênticas. E esse é precisamente o método de Muybridge: suprimir completamente valores pictóricos para atingir o essencial. Dessa maneira, o cenário e o esquema são sempre os mesmos. Suas quarenta e oito câmeras ficavam permanentemente posicionadas em três baterias: uma de vinte e quatro câmeras posicionadas em uma fileira horizontal, paralela ao plano de fundo; uma de doze câmeras posicionadas em frente ao sujeito, em um ângulo de sessenta graus relativo ao plano de fundo; e outra de 12 câmeras situadas atrás do sujeito, perpendicular ao plano de fundo fixo, que podiam ser alinhadas horizontal ou verticalmente. Dessa maneira, as ações são reveladas em vinte e quatro visões laterais, doze planificações frontais e doze planificações traseiras – as planificações frontais e traseiras correspondentes às doze primeiras visões laterais. Os sujeitos sempre se moviam através da mesma passarela lateral de sessenta e vinte metros de comprimento e eram fotografados contra uma grade perpendicular de 3,65 metros de altura.

Apenas em suas fotografias de animais, nas quais foi obrigado a se deslocar até o sujeito fotografado, Muybridge foi menos rígido. Essas imagens, ao contrário das que obteve de homens e mulheres, não foram feitas em condições uniformes. Muitas foram realizadas fora do estúdio, no Zoológico da Filadélfia, e os planos de fundo usados apresentam diversas variações do preto e branco básico. Alguns são inteiramente brancos, outros são exatamente a imagem negativa do plano de fundo do estúdio, ou seja, uma grade formada por linhas pretas sobre fundo branco. Em suas fotos da cacatua-de-crista-amarela, as linhas brancas formando um plano de fundo padrão são resolvidas com claridade e brilho incomuns, parecendo mais amplas do que o normal. Em algumas instâncias os planos de fundo não cobrem toda a área ao fundo da imagem, fazendo com que as imagens ganhem um aspecto completamente diferente: o animal não está mais em um universo fechado e artificial, e sim em cativeiro. Nas fotografias da capivara, as barras da jaula do animal substituem a grade de fundo.

As imagens de animais, às vezes, só cobrem uma passada, em até vinte e duas exposições separadas. Logo, o intervalo entre exposições é muito breve, de um vigésimo a um quinquagésimo de segundo. À primeira vista, cada uma das imagens nessas sequências parece idêntica, como quadros unitários de um filme colocados lado a lado ou as imagens repetidas usadas por Andy Warhol em algumas serigrafias. Na sequência intitulada “Bisão americano caminhando”, o bisão, visto de perfil contra um fundo completamente branco, move apenas as pernas e o rabo, enquanto todo o resto do corpo e sua sombra permanecem monumentalmente imóveis. A multiplicação de imagens quase idênticas funciona, nesse caso, para mitificar o bisão.

Muybridge se considerava um cientista, não um artista; chamava seu trabalho de zoopraxografia descritiva, a ciência da locomoção animal. Batizou seu maior trabalho simplesmente de Locomoção Animal (1887). Mas seu trabalho transcendeu o propósito unicamente científico, resumido por Beaumont Newhall em A história da fotografia (1937): “sua intenção específica foi criar um atlas para o uso de artistas, um dicionário visual de formas humanas e animais em movimento.” Ao compilar esse atlas, Muybridge também realizou uma série de imagens belas e únicas, como tentei indicar em minhas descrições inadequadas (felizmente, as fotografias encontram-se disponíveis em uma edição da Dover, de 1955, de A figura humana em movimento, e uma edição de 1957, também da Dover, de Animais em movimento). A própria severidade de seus sujeitos, sistematicamente nus, performando ações mecânicas, fotografados sequencialmente contra uma grade geométrica de um ângulo previamente fixado, permitiu-lhe capturar a beleza do gesto que afastava fotógrafos românticos ou pictóricos. Mesmo com a indiferença na composição e muitas vezes fora de foco, as imagens, em sua simplicidade e honestidade, permanecem belas até hoje, muito tempo depois da perda da beleza cultivada no trabalho de Emerson. Muybridge – que pode ser atribuído ao cinema, por ter projetado suas fotografias em movimento no zoopraxiscópio, que inventou em 1879 – um dos primeiros projetores cinematográficos anteriores ao cinetoscópio de Edison, por quatorze anos – foi, junto com Lumière, Méliès, e Porter, um dos mestres do cinema imagista.

Ao fotografar o movimento convencional abstraído do funcionalismo pela nudez do homem ou da mulher que o realiza, e pelo espaço geométrico e rígido em que acontece, Muybridge nos permite contemplar esse movimento separado de suas conotações usuais. Entretanto, suas imagens são completamente sem conteúdo, porque cada sequência é precedida pelo título explicativo que a acompanha. Esses títulos nos contam tudo que perceberíamos ou precisaríamos saber no contexto de um filme dramático ou didático. Eles nos dizem o que palavras conseguem dizer, e por isso libertam as imagens de qualquer significado literário. O que sobra? Apenas a imagem em movimento esvaziada de contexto, existindo por si mesma, permitindo a cada pessoa que a vê reagir como bem quiser.

Apesar da associação comum entre nudez e erotismo, as imagens de Muybridge não são eróticas; suas mulheres guardam pouca semelhança com os nus luxuosos pintados encontrados nos museus ou os nus de poses sedutoras publicados em Playboy. Notamos, pelo contrário, uma naturalidade e uma inocência cuja pureza não pode ser manchada pelo comportamento chocante. As mulheres de Muybridge são inocentes mesmo quando fumam cigarros atrevidamente. Sua inocência não é uma condição circunstancial; é mais próxima de um estado de graça. Parece ter um brilho espontâneo, sem nenhuma tentativa consciente de Muybridge de obtê-lo, pois ele era um fotógrafo, não um artista. Descobriu a inocência de sua modelo simplesmente por aderir à máxima de Bresson: “Filmes podem ser feitos apenas ignorando a vontade daqueles que aparecem neles, usando não o que fazem, mas o que são.” Muybridge, então, fez todo o possível para evitar que seus modelos se expressassem. Mas todos os obstáculos que colocou no caminho da revelação não foram suficientes.

Mesmo que as imagens de Muybridge não sejam sensuais, e mesmo que tenha desfrutado do patrocínio acadêmico da Universidade da Pensilvânia em seu trabalho, ele ainda tinha de enfrentar as forças poderosas do puritanismo vitoriano ao fazer fotografias de homens e mulheres nus. Apesar dos modelos masculinos serem atletas respeitáveis e instrutores de educação física na universidade, as modelos femininas eram principalmente modelos de artistas profissionais, consideradas, na época, mulheres perdidas, e entre elas parecia haver algumas prostitutas. Podemos observar nas fotografias mulheres com cabelos extremamente curtos e fumando cigarros, gestos considerados chocantes e devassos para mulheres daquela época.

O trabalho de Muybridge era necessariamente libertador em sua violação do tabu contra a nudez. Ainda hoje, a nudez em filmes só é aceitável quando realizada com gosto e seletividade. Mas Muybridge tratava a nudez de maneira completamente objetiva, sem qualquer pretensão de gosto ou sensibilidade, sem qualquer pitada de lirismo. Não é sentimentalizada. Nenhuma iluminação especial – sempre a mesma luz solar direta lúcida e sem piedade. Sem ângulos seletivos, sem foco seletivo. Os ângulos são sempre os mesmos, predeterminados; as imagens são arbitrariamente focadas ou desfocadas como os instantâneos tirados por uma máquina fotográfica de 25 centavos.

Muybridge eliminou impiedosamente qualquer toque de lirismo, do pastoral e do bucólico em seu trabalho, porque esses elementos desviam a atenção dos movimentos básicos que eram seu único interesse. Ao invés disso, ele se esforçou para enfatizar a nudez completa dos fotografados, humilhando-os ao fazê-los engatinhar, jogar água fria uns nos outros, pular barreiras altas, levantar e arremessar pesos maciços. Fotografava sem piedade deformados e deficientes – por exemplo, um amputado andando de muletas, um garoto sem pernas subindo em uma cadeira. Mas, em troca disso, ele mesmo aparecia nu perante as câmeras, um homem forte e velho com uma barba branca sentado em uma cadeira. Apesar da impessoalidade científica de seu trabalho, Muybridge ainda expressava a própria personalidade perversa. Além disso, no tema que escolheu – movimento humano simples – e em seu tratamento direto, descobriu o meio cinematográfico.

[1] Dispositivo criado pelo fotógrafo para projetar imagens sequenciais, criando a ilusão de movimento. (N. da T.)

Publicado originalmente na revista Film Culture, Número 41, Verão de 1966. Tradução de Ana Clara Matta, revisão de Gilda Morassutti e Daniel Pellizzari.

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