Exorcismo do século XXI

No cinema

11.01.13

Um grande filme entra em cartaz em São Paulo sob o risco de ser esmagado pelos blockbusters infanto-juvenis e pelos “filmes do Oscar”. Estou falando de Além das montanhas, do romeno Cristian Mungiu, um dos destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2012.

http://www.youtube.com/watch?v=QTfbOpgnktE

Escrevi com entusiasmo sobre ele na ocasião, e de lá para cá minha admiração não diminuiu. Trata-se, para dizer sucintamente, de um drama de exorcismo ambientado numa remota aldeia da Romênia. Para ser mais exato, num convento católico ortodoxo onde não há luz elétrica nem utensílios modernos. É lá que se reencontram duas jovens amigas e talvez ex-namoradas, Alina (Cristina Flutur) e Voichita (Cosmina Stratan), depois que a primeira passou um tempo na Alemanha trabalhando de garçonete.

Esse mundo aparentemente parado no tempo, em que um padre severo domina de modo absoluto as ações e os pensamentos de um rebanho de mulheres cobertas da cabeça aos pés, sofre um abalo profundo com a chegada de Alina. Decidida a arrancar Voichita dali e a levá-la com ela para a Alemanha – o que equivaleria a trazê-la da Idade Média para o século XXI -, a moça não se submete às regras do convento e passa a ser tratada como uma possuída. A própria Voichita se dilacera entre o amor terreno pela amiga e a fé (no padre e em Deus).

 

A fúria do corpo

O acerto fundamental de Mungiu está em centrar no corpo de Alina, e não no terreno abstrato das ideias, o embate entre desejo e opressão. É a nudez da moça que desestabiliza a fé, é a imprevisibilidade do seu corpo que perturba a ordem. Reprimido, o desejo se transfigura em doença, a razão em loucura. O corpo se contorce, não cabe em si, transborda em saliva, sangue, urina e fluidos diversos.

Também em sua linguagem expositiva o filme é movido por esse embate. Os longos planos fixos e contemplativos da vida cotidiana são sacudidos por movimentos bruscos de câmera na mão quando Eros se desencadeia como uma fera desembestada. É todo um mundo que entra em convulsão.

Em Cannes o filme ganhou os prêmios de roteiro e atriz, dividido entre suas duas protagonistas, mas ficou fora da disputa do Oscar de produção estrangeira, daí o risco de passar despercebido. Convém assistir logo.

Para quem julgar que o tema de Além das montanhas é antigo, ou que se circunscreve a grotões atrasados do planeta, vale lembrar duas coisas. Primeiro, a facilidade com que líderes evangélicos – e fundamentalistas de toda ordem – acusam os que não se enquadram em seus preceitos de estarem possuídos pelo demônio. Segundo, a violência que se abate contra os que colocam a sexualidade na linha de frente da luta contra o poder político, religioso e econômico, como mostram a prisão das componentes do Pussy Riot na Rússia e a inaudita brutalidade contra as moças do grupo Femen que protestavam contra o BBB num shopping de São Paulo. O corpo, ao que tudo indica, ainda é o grande campo de batalha.

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