O melhor filme que entra em cartaz hoje (6 de dezembro) no Brasil vem de Hollywood. Só que da Hollywood de meio século atrás. Estou falando de Um corpo que cai (1958), de Hitchcock, primeiro de uma série de clássicos a serem relançados, em cópia nova, pela Espaço Filmes, de Adhemar de Oliveira. Entre outras obras programadas para os próximos meses estão O pequeno fugitivo, Fome de viver, Os pássaros e Monty Python e o sentido da vida.
Mas vamos a Um corpo que cai. Não poderia haver escolha mais oportuna. O filme de Hitchcock voltou a ficar em evidência desde que, no ano passado, desbancou Cidadão Kane do topo do célebre ranking de maiores filmes de todos os tempos da revista britânica Sight and Sound. Na ocasião, escrevi sobre o assunto aqui e não quero me repetir.
Construção da vertigem
Mas, por mais teses que tenham sido escritas sobre cada um de suas sequências, há sempre algo novo a descobrir nessa obra-prima. A figura que organiza e dá sentido a sua complexa arquitetura estética e narrativa é, como já se disse, a da espiral, signo da vertigem: da vertigem literal que acomete o acrofóbico ex-detetive Scottie Ferguson (James Stewart), mas principalmente da vertigem da paixão pela fugidia Madeleine Elster (Kim Novak). A progressão narrativa do filme aponta toda para a fusão dessas duas vertigens, a literal e a figurada, o que acontece na sequência crucial da escadaria da torre da missão.
Uma ocupação interessante para o cinéfilo obstinado seria a de enumerar a miríade de formas espirais que se sucedem na tela, a começar do superclose de um olho humano nos créditos de abertura: o coque no cabelo de Madeleine, os círculos de uma árvore multicentenária, íris, corolas de flores, escadarias. Desnecessário lembrar que a construção do enredo também obedece a uma forma espiral, com o retorno aos mesmos pontos, só que em alturas dramáticas diferentes. O mesmo se pode dizer da música hipnótica de Bernard Herrmann.
Quanto à criação especificamente cinematográfica da sensação de vertigem, Hitchcock a explicou em detalhes em seu famoso livro de entrevistas a François Truffaut. É uma combinação de um travelling para frente com um zoom para trás, tal como acontece na já citada cena da torre da missão. Ali, mostra-se um poço de escada na vertical, de cima para baixo, mas para viabilizar a filmagem a um custo acessível, o diretor mandou construir uma maquete da escadaria da torre e filmou-a deitada, na horizontal. Simples e genial, como quase todas as suas soluções técnicas. Confira o efeito aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=GnpZN2HQ3OQ
Mas há inúmeras outras passagens extraordinárias nesse filme inesgotável. Uma que me encanta particularmente é a longa sequência sem diálogos (daquelas que Brian De Palma adora emular) em que Scottie segue Madeleine até um beco obscuro. Ela entra por uma porta e, um minuto depois, ele entra atrás. É a porta dos fundos de uma exuberante floricultura. Quando ele abre lentamente a porta, é como se abrisse uma cortina para outra dimensão espacial, dramática, existencial. É também como se o filme mudasse de repente de gênero, passando do realismo à fantasia. É para essa fantasia que Hitchcock nos puxa pela mão, e quem há de resistir? Aqui, a cena:
http://www.youtube.com/watch?v=Ko9QYkIFezs
Artigas, ou a construção do herói
Perdido em meio a uma enxurrada de lançamentos, um filme belo e original corre o risco de sair de cartaz sem ter sido devidamente visto e apreciado: Artigas – La Redota, do uruguaio-brasileiro Cesar Charlone, o realizador de O banheiro do papa e diretor de fotografia de filmes como Cidade de Deus, Como nascem os anjos e Ensaio sobre a cegueira.
O personagem-título é o caudilho José Artigas (Jorge Esmoris), considerado o herói fundador da nação uruguaia. Mas o filme de Charlone não é um mero épico histórico, nem tampouco uma cinebiografia convencional. Seu argumento é engenhoso: em 1884, o pintor Juan Manuel Blanes (Yamandú Cruz) recebe do governo uruguaio a incumbência de fazer um retrato de Artigas, para usá-lo como símbolo unificador do país. Mas as únicas pistas de que dispõe o artista são desenhos e anotações feitas por um espião espanhol (Rodolfo Sancho) que setenta anos antes se infiltrou no acampamento de Artigas com o intuito de matá-lo.
A narrativa se desenvolve então nas duas épocas, a da encomenda do quadro e a do início do século XIX, aquela fase confusa de guerras de independência e escaramuças de fronteiras entre Uruguai, Argentina e Brasil. Na alternância entre os dois momentos, o perfil do caudilho (não apenas no sentido físico) vai sendo esboçado e apagado seguidamente, como num palimpsesto cuja imagem-matriz se perdeu para sempre. Quanto mais o espião – e, por meio dele, o pintor Blanes – se aproxima de Artigas, mais este parece lhe escapar. Já em sua época ele era uma construção imaginária, uma projeção dos anseios e ilusões de seus compatriotas.
Um filme irônico e amargo não apenas quanto à invenção de nossos heróis, mas também quanto à impossibilidade de conhecer “a” verdade histórica, e muito menos a verdade de um indivíduo. Vá ver enquanto é tempo.