Almodóvar, a pele e a alma

No cinema

07.11.11

Ao que parece, alguns críticos torceram o nariz para o novo Almodóvar, A pele que habito. Como este é um daqueles casos em que não se pode ficar em cima do muro, vou logo dizendo que adorei.

O filme pode não ter o equilíbrio quase clássico de melodramas maduros como Carne trêmula, Tudo sobre minha mãe e Fale com ela, nem a exuberância solar e multicolorida de comédias como Mulheres à beira de um ataque de nervos, Kika ou De salto alto.

Mas reencontramos aqui, desta vez numa chave sombria e horripilante, a fantasia desabrida, descabelada, do primeiro Almodóvar, o de Labirinto de paixões, Maus hábitos e Que fiz eu para merecer isto? Digamos que Almodóvar manteve a bizarrice, mas trocou o carnaval pelo réquiem.

Inspirado no romance Tarântula, de Thierry Jouquet, A pele que habito parece ter como referências básicas, por um lado, o cinema B americano de terror e ficção científica, e por outro as esculturas de seres mutantes (humanos e animais) de Louise Bourgeois. Não por acaso, nos créditos finais, Almodóvar diz que a obra de Bourgeois salvou a vida do personagem Vicente (Jan Cornet/Elena Anaya).

Ciência ensandecida

Não se pode contar muito do retorcido enredo, sob pena de estragar o prazer do leitor/espectador. Basta dizer que se trata da obsessão de um brilhante cirurgião plástico, Robert Ledgard (Antonio Banderas), por trazer de volta à vida sua amada, desfigurada num desastre de carro.

Vêm à mente de imediato inumeráveis cientistas ensandecidos da literatura e do cinema – Dr. Frankenstein, o Rotwang de Metrópolis, o Morel de Bioy Casares, Dr. Moreau, Dr. Phibes – que ousaram rivalizar com Deus e subverter os limites da vida. Uma linhagem cara também ao David Cronenberg de A mosca e eXistenZ.

Consciente dessa tradição em que a ficção científica deságua no terror, Almodóvar insere nela seu protagonista. Mudanças de sexo e de identidade não são novidade no cinema do diretor, só que aqui ele procura dar ao processo uma aura “científica” (deliciosamente fake, é claro) de verossimilhança, amparada no fato de que a ciência parece cada vez mais próxima desse delírio.

O mais tocante é que, embora sem abrir mão do humor – aqui crispado, como que a contrapelo -, Almodóvar elude as possibilidades burlescas de seu enredo. Ele não fez uma chanchada, fez uma elegia, em que a música sinistra, a predominância do claro-escuro e a atuação constrita de Banderas induzem a um sentimento de luto, de perda irreparável, análogo ao hitchcockiano Um corpo que cai, com o qual A pele que habito dialoga em mais de um plano.

Existência e aparência

Da brilhante crítica do filme que Inácio Araujo publicou na Folha de S. Paulo no último dia 4, só discordo desta formulação: “O eu que habita essa pele é vazio: a pele define não apenas a aparência, mas tudo o que nós somos”. Penso que a última fala do filme – belíssima e surpreendente em sua concisão – afirma o contrário. Algo que, aliás, já sabia o protagonista de outra insólita história de metamorfose, O segundo rosto, de John Frankenheimer.

Antes de encerrar estas considerações que já vão longas, chamo a atenção para a presença oblíqua do Brasil no filme. Almodóvar, como se sabe, tem uma forte ligação afetiva com o país e sua cultura, sobretudo sua música. Caetano Veloso aparece em pessoa em Fale com ela, assim como a música de Tom Jobim na voz de Elis Regina. O Brasil, ali, é um território imaginário de afetividade e doçura. Aqui, a referência é bem menos positiva: o meio-irmão do protagonista, estúpido e sem escrúpulos, fez seu aprendizado de maldades numa favela brasileira, onde transportava drogas para os traficantes.

E talvez não seja casual que o ser híbrido e falso criado pelo Dr. Ledgard tenha sido batizado de Vera Cruz, um dos primeiros nomes do Brasil – um país hoje bem distante da “visão do paraíso” que encantou seus primeiros visitantes.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: Antonio Banderas e Elena Anaya em A pele que habito, de Pedro Almodóvar

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