“A Máquina do Bem e do Mal” encerra a bem-vinda publicação da narrativa curta completa de Rodolfo Walsh no Brasil. O terceiro volume, organizado por Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni, assim como os anteriores, “Essa Mulher e outros contos” (2010) e “Variações em Vermelho e outros casos de Daniel Hernández” (2011), amarra cabeça e cauda ? um uróboro literário ? da produção do referencial escritor e jornalista argentino.
A vida de Walsh, de modo semelhante a outras vítimas dos anos de chumbo grosso das ditaduras latino-americanas, adquiriu contornos míticos com sua morte trágica em 1977. Metralhado por militares nas ruas de Buenos Aires cerca de um ano após a morte de sua filha em circunstâncias parecidas, tinha cinquenta anos de idade. Não havia outra maneira de pará-lo. No prefácio à conclusiva antologia recém editada, Ricardo Piglia analisa o envolvimento progressivo do autor em consequência de suas diferenças com o meio literário: “o uso político da literatura deve prescindir da ficção. Esse parece ser o grande ensinamento de Walsh”.
Nascido em 1927 na província patagônica de Rio Negro, Rodolfo Jorge Walsh iniciou sua carreira literária como autor de contos policiais. Trasladou o gênero alienígena, de influências norte-americana e inglesa, aos ambientes da Buenos Aires dos anos 50, publicando com regularidade em revistas de entretenimento. Depois disso, escreveu duas peças de teatro e publicou três volumes de contos literários, “Os Ofícios Terrestres”, “Um Quilo de Ouro” e “Um Sombrio Dia de Justiça”, reunidos em “Essa Mulher?”.
À fatura da experiência adquirida anteriormente no policial, Walsh somou o uso letal que faz da elipse. Tal recurso determina nos relatos (principalmente nos de “Essa Mulher”, porém também nos “Casos do Delegado Laurenzi”, quase um livro à parte em “A Máquina?”) sua fisionomia experimental, que também pode ser reconhecida em “Operação Massacre”, reportagem literária pioneira na América Latina. O jornalismo aliado à militância peronista foi simultaneamente a cruz e a espada do autor argentino. “Operação Massacre”, publicado em 1957, reconstrói com técnica de ficção de suspense o fuzilamento clandestino de 12 civis supostamente envolvidos em conspiração contra a ditadura que depusera Perón um ano antes. O ritmo letárgico imposto por Walsh, revelando pouco a pouco o caráter dos envolvidos, é tão aterrorizante quanto o episódio real.
Ao menos em termos morfológicos, os contos de “A Máquina do Bem e do Mal” estão mais próximos daqueles reunidos em “Variações em vermelho”. Desde seu relato inaugural, “As três noites de Isaías Bloom” (1950), a redução narrativa se aproxima da moral do universo da fábula ou da parábola. Mesmo narrativas fantásticas como “O Santo” e “O Xadrez e os Deuses”, nas quais a influência de Borges se evidencia, operam com essa sugestão alegórica. A ficção madura dos “Contos Finais” ? representada pelo conto-título e o violento “A mulher proibida” ? coroa a literatura desse escritor fundamental, definida por Rodolfo Walsh como “um avanço laborioso através da própria estupidez”.