Interior de Mônaco

Quadro a quadro

20.05.11

Este texto foi publicado na sexta edição da revista serrote, publicação quadrimestral do Instituto Moreira Salles.

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As duas versões de Interior de Mônaco – o estudo, perten­cente ao acervo do Instituto Moreira Salles, e o trabalho final, em coleção particular – são possivelmente as últimas pinturas de alta qualidade realizadas por Anita Malfatti. Ambas devem ter sido feitas em 1925,1 durante a terceira viagem de estudos da artista, uma estada de cinco anos em Paris2 – de agosto de 1923 a setembro de 1928 – custeada por bolsa do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo.

Anteriormente, Anita estivera por mais de três anos em Berlim (de setembro de 1910 a inícios de 1914) e por um ano e meio em Nova York (do começo de 1915 a meados de 1916). Foram períodos de intensa atividade artística e cultu­ral nas duas cidades e nos dois países, e ela pôde formar-se em meio a uma situação rica e complexa: a afirmação do expressionismo na Alemanha, as grandes exposições de arte moderna em Düsseldorf e Colônia (as Sonderbund), os ecos da primeira grande mostra da nova arte no Armory Show de Nova York, em 1913. Mas não só. Antes de sua ida para Paris, Anita Malfatti havia protagonizado, em 1917, a primeira mostra de arte moderna relevante do país3 e tinha sentido na pele os limites impostos ao desenvolvimento da arte pelo provincianismo cultural do Brasil, que ainda ecoa­riam em sua participação na Semana de 22.

Sua ida a Paris ocorre num momento em que seu tra­balho parece se encontrar numa encruzilhada, oscilando entre um modernismo pacificado (como em Nu reclinado, de 1921) e a tentativa de levar adiante seu expressionismo singular (Mário de Andrade i, 1921-1922). De volta à Europa, Anita continua a revelar uma indecisão surpreendente. Veneza, Canaleto (1924) e Chanson de Montmartre (1926) ficam entre um tradicionalismo bem-comportado e um pri­mitivismo singelo que a atrairá cada vez mais.

Interior de Mônaco parece buscar uma outra saída, ao aproximar-se da pintura de Matisse, um artista que ela admirava e que conhecia bem. Vários de seus melhores trabalhos – O farol (1915), Uma estudante (1915-1916) – reve­lam interesse pela fase fauvista do pintor. Agora, porém, Anita se volta principalmente para o recurso às padronagens, arabescos e estampas que Matisse incorporou a suas telas ao menos desde 1910, usando-as como recurso estru­tural (e não simplesmente decorativo), na medida em que possibilitavam um estilhaçamento das realidades repre­sentadas e, assim, uma rearticulação mais livre e complexa dos elementos do mundo.4

No estudo pertencente ao Instituto Moreira Salles – óleo sobre madeira, 33 x 24 centímetros e com outra pintura no verso, Toalete matinal -, quase todas as coisas se encon­tram fragmentadas pelas padronagens, ainda que o caráter notacional do estudo não revele tão plenamente a dimen­são plana das pinceladas, que na versão final coincidem de maneira mais clara com a superficialidade dos padrões decorativos. A presença meio abrupta da mesa no primeiro plano se fragiliza pelo estampado da toalha e sua profun­didade se vê suavizada pelo bandô que emoldura a porta e que — o que se nota melhor na tela final – é feito com o mesmo tecido que recobre a mesa, correndo paralelamente à tela e assim reduzindo a tridimensionalidade da mesa.

O próprio formato curvilíneo do bandô e da mesa aju­dam a aparar as arestas do mundo, com seus volumes mas­sudos. O móvel à direita mantém algo de sua solidez. Mas o papel de parede do cômodo e a geometria do piso insis­tem em problematizá-las. Sobre ele, flores, vaso e fruteira se mostram pouco mais profundos que os desenhos do papel que recobre a parede. E mesmo os puxadores das gavetas desempenham sua função nesse movimento de aplaina-mento do mundo, com sua correspondente vivacidade.

No entanto, Anita Malfatti se propõe um interessante desafio – muito pouco frequente nas telas de Matisse -, ao fazer com que esse primeiro ambiente, tão plano, se abra para outro cômodo, com a consequente profundidade ilusionista que esse movimento solicita. Mais: coloca nesse outro quarto a única figura humana do quadro (o que intensifica, até pela força da tradição, a presença desse ambiente) e realiza esse outro espaço com cores mais claras e luminosas do que as empregadas no primeiro plano.

À exterioridade proporcionada pelo caráter superficial do primeiro plano, opõe-se uma situação de maior recolhimento e introspecção, ainda que as paredes do quarto também estejam revestidas por padrões decorati­vos. Abrigada num roupão, voltada para a janela, a figura parece encantada por uma luz que nos é sugerida apenas vagamente. Talvez ela tenha acor­dado pouco antes e ainda traga nos olhos a irrealidade dos sonhos. Jamais saberemos. Mas a passagem do primeiro cômodo – decorado com móveis tradicionais, quase opressivos – ao quarto confere ao ambiente em que se encontra a personagem uma dimensão mais livre, no qual a luz da rua traz consigo promessas e convites. Ainda que a paz e o repouso da cena conspi­rem contra as promessas do dia.

Com toda a sua exterioridade, o estudo de Anita Malfatti conduz antes a um devaneio doméstico que ao mundo luminoso e sem dobras de Matisse, mesmo que esse devaneio povoe a casa de uma dimensão que ela antes não possuía. E as pequenas dimensões dos dois quadros – a tela tem 73 x 60 cen­tímetros – apenas reforçam a impressão de um acontecimento sutilíssimo e privado, que a artista soube revelar admiravelmente. Talvez esse fosse um caminho a seguir. Quem poderá dizer? Nele, Anita talvez pudesse conciliar seu crescente interesse pelas manifestações populares – sempre tão ricas em detalhes, decorativismos e miudezas – e sua formação moderna. Não foi assim, porém, que sua arte caminhou.

 

NOTAS

1. Quase todas as informações deste texto foram tiradas do livro Anita Malfatti no tempo e no espaço, de Marta Rossetti Batista. São Paulo: Om Brasil, 19 85. A Editora 34 republicou esse trabalho, em dois volumes, em 2006.

2. Anita Malfatti esteve várias vezes no principado de Mônaco durante sua estada na França. Provavelmente, as duas pinturas foram feitas em sua primeira visita ao principado.

3. Lasar Segall expusera em São Paulo e em Campinas em 1913, mas sem a repercussão da exposição de Anita Malfatti.

4. Quanto a essa questão, ver Roger Fry, Henri Matisse. Paris/Londres: A Zwemmer, 1935, em especial pp. 32-33.

 

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