Intocáveis é um fenômeno: lançado em novembro de 2011 na França, o filme de Olivier Nakache e Eric Toledano foi visto visto por 20 milhões de espectadores em seu país, mais 8,5 milhões na Alemanha, 2,5 milhões na Itália e outros tantos na Espanha. O que explica tamanho sucesso?
Não tenho a resposta, mas nada me impede de lançar no ar alguns palpites. Passemos rapidamente pelos atrativos óbvios do filme.
http://www.youtube.com/watch?v=FpwuGtn8aGA
Primeiro: seu protagonista, ou um deles (o milionário Philippe, vivido por François Cluzet), é um tetraplégico. Filmes centrados em personagens com algum handicap físico ou mental têm meio caminho andado para tocar o coração do público – vide Rain man, Meu pé esquerdo, Perfume de mulher, O oitavo dia, O paciente inglês, O escafandro e a borboleta e inúmeros outros.
Segundo: é “baseado em uma história real”. Como bem observou o escritor Bernardo Carvalho, a imaginação anda com o prestígio tão baixo em nossa época que a mera ficção não basta; precisa do aval dos “fatos reais”, de preferência com aqueles infames letreiros finais informando que Fulano se casou com a secretária e teve três filhos, Beltrano cumpre pena num presídio de segurança máxima e Sicrana ganhou uma herança e foi viver no Havaí.
Velhas fórmulas, nova roupagem
É impressionante que a esta altura da centenária história do cinema ainda haja tanta gente que, ao ver um filme desses, acredite estar diante da “história verdadeira”, da vida como ela é, sem perceber que os fatos que supostamente inspiraram a obra foram organizados e moldados de maneira a se encaixar em fórmulas dramáticas e narrativas de êxito comprovado. Podemos dizer, sem grande exagero, que no cinema mainstream, todas as histórias – “reais” ou inventadas – se convertem numa única e mesma história, com duas ou três variações, como bem sabe quem viu O jogador, de Robert Altman. Quem não viu, tem aqui como aperitivo o esplêndido plano-sequência de abertura, em que são esboçados os argumentos de vários filmes:
http://www.youtube.com/watch?v=0epB5Z6ijpk
Em Intocáveis reencontramos, sob nova roupagem, os clichês dos filmes de “superação da adversidade”, somados aos das comédias dramáticas de amizade forjada na diferença (e na hostilidade inicial). Segue-se à risca a tal “curva dramática” que alterna habilmente momentos de humor e drama, de tensão e riso.
Insinua-se, em meio a tudo isso, uma sátira um tanto demagógica e perigosa a valores e signos da dita “alta cultura”, a partir de um ponto de vista popular/moderno, evidentemente compartilhado pela maior parte do público. Pelos olhos e ouvidos de Driss (Omar Sy), o acompanhante negro do milionário tetraplégico e verdadeiro condutor da narrativa, a música de câmara é chata, a ópera é ridícula e a arte abstrata é um borrão sem sentido. Em contraste, a vibração pop-dançante do Earth, Wind and Fire é irresistível. Para que o efeito seja quase didático, a festa de aniversário na casa de Philippe é de uma caretice atroz (e inverossímil para o personagem, adepto da modernidade tecnológica e dos esportes radicais), mais parecendo um concerto de salão do século 18.
Mas há, nesse departamento, uma brincadeira muito significativa no filme de Nakache e Toledano. Quando o milionário tenta fazer seu cuidador se interessar por música erudita, apresentando-lhe algumas peças muito conhecidas de Vivaldi, Mozart e Beethoven, Driss reconhece algumas: uma toca num comercial de televisão, outra é usada como gravação de espera de um telemarketing e assim por diante. O efeito é cômico, mas se trata de uma piada amarga, por dizer muito sobre o modo como, em nosso tempo, a arte mais refinada é apropriada e aviltada pela cultura do consumo.
Sacudindo a Europa estagnada
E é aqui, finalmente, que chegamos ao mais importante. Para além do uso competente de determinadas fórmulas, todo filme que bate recordes de bilheteria, atraindo milhões de espectadores, está sintonizado profundamente com sua época. Expressa, por assim dizer, o “espírito do tempo”. Arrisco dizer que Intocáveis é o filme que melhor responde, no plano do senso comum, às inquietações da Europa em crise. Não realiza uma crítica em profundidade desse processo – isso quem fez foi Godard em Filme socialismo, ou Olivier Assayas emHoras de verão -, mas serve como lenitivo para a aflição do cidadão médio.
Talvez não seja despropositado ver no milionário tetraplégico uma encarnação da velha Europa, cheia de riqueza e cultura, mas paralisada e impotente, que necessita da vitalidade, do humor, da sensualidade e do espírito criativo do imigrante para se renovar e ganhar uma sobrevida. Essas características estão associadas, no imaginário popular, ao africano, em especial ao negro retinto da África subsaariana. Não deve ter sido por acaso que os realizadores trocaram a nacionalidade do personagem do cuidador. O verdadeiro, Abdel Sellou, é argelino. O do filme, Driss, é senegalês. Era preciso escurecê-lo para que tudo ficasse mais claro.
Essa infusão de sangue novo vindo da periferia do mundo para revitalizar a Europa é um fato visível hoje em toda parte, da música popular ao futebol, passando evidentemente pelo cinema. O que o filme faz é enfatizar isso. Driss tem as características ideais de um anjo regenerador: não só devolve ao patrão a alegria de viver, como também resolve todos os problemas em volta, colocando nos trilhos seu próprio irmão delinquente, a filha adolescente do milionário, o namorado desta e até o vizinho que estaciona o carro em local proibido.
Não deixa de ser louvável a apresentação positiva do imigrante pobre e negro num momento em que recrudescem na Europa o racismo e a xenofobia dos grupos conservadores, sempre prontos a jogar no “outro” a culpa por suas mazelas. No filme, o imigrante deixa de ser problema para se tornar solução, e esse é seu grande mérito.
O êxito estrondoso de Intocáveis permite fazer algumas especulações selvagens: 1) o filme, se for inscrito, é sério candidato ao próximo Oscar de filme estrangeiro; 2) um remake hollywoodiano não deve demorar a ser cogitado, se é que ainda não foi. Uma escolha óbvia para o papel do cuidador seria Will Smith. E para o do milionário… que tal Bill Murray?