London’s Burning – um escritor pernambucano assiste ao casamento real

Literatura

02.05.11

Toda frase de pernambucano devia começar com “modéstia à parte”. Se não somos arrogantes, temos a fama. E de que mais se precisa, hoje em dia, senão da aparência? Por isso hesitei em começar afirmando, logo de cara, que sou inglês desde Olinda. Apesar de parecer vaidade, não vejo mérito nisso. Vejo antes uma fraqueza: fui colonizado. E pior: colonizado à distância, em fascículos, como um aluno de Telecurso. Aprendi quase tudo o que sei sobre esta cultura e este país nas aulas da Cultura Inglesa, no bairro olindense de Casa Caiada (Whitewashed House, if you please). As mesmas aulas que me indicaram também as portas da literatura inglesa, em livrinhos da Penguin.

O efeito da combinação foi devastador: virei professor da Cultura aos 15 anos, bebendo chá com leite no calor do Nordeste. Muito tempo depois, na Festa Literária Internacional de Parati do ano passado, minha ignorância descobriu que o conterrâneo Gilberto Freyre escreveu um livro sobre os “Ingleses no Brasil”, e vi que minha falha de caráter está ao menos intelectualmente apaziguada. Naquela mesma FLIP, a Penguin celebrou sua chegada ao país, tendo dois pernambucanos nos títulos de estréia. Hoje, arrematando tudo isso, me encontro vivendo em Londres ? como sempre vivi. Mas trocando as suposições pela realidade; e as aulas, pela prova oral no metrô.

Chegar em Londres nesta época, e neste ano, foi como chegar ao Rio em Copa do Mundo que o Brasil vence. Nada mais caricato e mais verdadeiro e mais intenso.

Para começar, pudemos observar o inglês sob o sol. Na primavera mais quente dos últimos tempos, seu temperamento floriu e o pólen soprado pelas gargalhadas se misturou com os primos mais extrovertidos das ex-colônias. No calor, o inglês vira um ser humano nu, vermelho, deitado e feliz. Ver esse anti-inglês é vê-lo também inglês, num retrato em negativo que os olhos brasileiros entendem com mais facilidade. Se já eram gentis, agora são simpáticos. Se já falavam do tempo, agora o elogiam. Se já não possuíam a melhor dentição, agora a exibem.

“Você trouxe o sol”, eles me dizem no trabalho. Fui recebido com muito carinho, mais do que poderia sonhar. Outro dia, quando baixei as persianas de minha sala, alertaram: “você pode se arrepender, este talvez seja o único sol que você verá no ano”.

Completando o calor antecipado, dois feriadões de quatro dias. Muita alteração na rotina de quem escala horários de trem para as 8h34 ou 15h09. Um povo que não arredonda nem um minuto de repente se viu enforcando 48 horas. A fleuma não resistiu.

Então as circunstâncias – sempre as circunstâncias – condensaram o vapor que se formava nos ânimos da nação: um casamento real. A extravagância com permissão para ser. O id enfim livre de superego.

O resultado é que, para o inglês, não houve casamento. Houve, isso sim, ele próprio na abadia, nas TVs, nos jornais, na exibição sem constrangimento. O britânico casou-se consigo. E fustigou seu modo de ser aos ventos enquanto nós víamos apenas bandeirolas. Eles vibraram com a raridade de serem britânicos escancaradamente. Puderam comer com o garfo virado para baixo, tomar cerveja sem gás, dirigir na mão esquerda, pedir feijão laranja no café da manhã, parar do lado direito na escada rolante, dar o endereço ao taxista antes de entrar no táxi, puderam celebrar tudo isso sem sentimento de culpa ou explicações. Ser britânico era mais importante do que ser monarquista, e a monarquia trouxe o sentimento de volta. Parece um paradoxo, mas é.

Não bastando a indulgência nacional, eles sabiam que o mundo inteiro estava olhando. Dois bilhões de estrangeiros pararam para ver e admirar o espetáculo, em lugar de tirar uma foto para registrar mais uma esquisitice britânica. A ilha é o centro, o planeta é o continente.

Para o menino de Olinda, que assistia com uma curiosidade guardada há muitos anos, foi um intensivo. E uma chegada e tanto.

 

André Laurentino é escritor e diretor-executivo de criação da TBWA-UK

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