Em palestra para o curso de escrita criativa da Columbia University, a escritora inglesa Zadie Smith dividiu os escritores em dois grupos – os macroplanejadores e os microgerentes. Macroplanejadores só iniciam o processo criativo depois de extenso planejamento. São dedicados no processo de pesquisa, generosos em notas e precisos em seus cronogramas e linhas do tempo.
É possível reconhecer um macroplanejador pelos post-its e moleskines. Lembra aquele colega de escola que todos tivemos, que tinha o caderno mais organizado e usava canetas coloridas para dividir assuntos e matérias. A segurança de estrutura possibilita aos macroplanejadores a liberdade de movimento – não é incomum começarem um romance pelo meio. Na medida em que progridem, as escolhas aumentam – podem escrever múltiplos finais, tirar e incluir personagens, mudar o local de um livro de Londres para Berlim ou alterar a ordem dos capítulos.
Microgerentes são aqueles para quem o livro só acontece no momento presente – uma sentença leva a outra, e a outra. Por isso as primeiras 20 páginas são as mais importantes e difíceis de escrever. Definem perspectiva e voz, e formam a base do processo subjetivo adotado por este tipo de escritor. Um microgerente pode passar meses reescrevendo essas páginas até encontrar o tom que deseja seguir. O resultado pode levar a um início de romance engessado, com frases por demais trabalhadas, em que o leitor consegue perceber o esforço exagerado do escritor. Mas apesar do sofrimento implícito e perceptível, superar estas primeiras páginas conduz a um livro que se escreve com facilidade. Preocupar-se com as 20 primeiras páginas é uma forma de se preocupar com o romance inteiro. Uma forma de encontrar sua estrutura, enredo e personagens, elementos que para um microplanejador estão contidos na sensibilidade de uma sentença.
O escritor James Patterson, que já vendeu mais de 300 milhões de exemplares, é um exemplo de macroplanejador. Constrói seus livros a partir de uma estrutura anterior à elaboração dos capítulos, e durante meses alimenta esta estrutura com apontamentos para cenas e diálogos. Quando termina o processo, afirma, o livro está praticamente pronto. Só é preciso seguir o roteiro estipulado. Ken Follet é outro autor de best-sellers que segue processo semelhante. Primeiro define a estrutura, para depois desenvolver os capítulos.
Pode-se dizer que o gênero destes autores – ficção popular – é compatível com o excesso de planejamento. Tanto Patterson quanto Follet escrevem livros que precisam manter a atenção do leitor a cada quatro ou cinco páginas, e que por isso seguem um padrão. Seus livros lembram os capítulos de uma novela brasileira – toda a noite a trama termina com um suspense que será solucionado no dia seguinte. Alguns dias depois o espectador nem se lembrará do que tanto o preocupava naquela noite de quarta-feira. Haverá outras reviravoltas, descobertas, traições.
Mas nem todos os autores de best-sellers trabalham assim. Stephen King não acredita em planejamento. Para ele, estruturar um romance mata a espontaneidade do processo criativo. King define o processo como um estado de transe que anula o tempo – parte de seu trabalho como escritor, ele diz, é sonhar acordado. O escritor de livros policiais Lee Child trabalha da mesma forma. Certa vez um pesquisador da universidade de Cambridge pediu para acompanhá-lo durante o processo de escrita de um livro. No primeiro parágrafo do livro, Child descreveu a morte de um personagem chamado Keever. O pesquisador perguntou a Child quem era Keever, e o que tinha acontecido com ele. Child respondeu que não tinha a menor ideia – só depois de escrever dois terços do livro é que a trama começou a fazer sentido, até mesmo para ele.
Esse processo de escrita que não passa pelo racional é mencionado por muitos outros escritores. Hemingway dizia que depois de um dia de trabalho é preciso se esquecer completamente do que foi feito, para o subconsciente alimentar o trabalho do dia seguinte. Elena Ferrante descreve sua frantumaglia – pedaços de sentimentos e memórias que habitam a mente de uma pessoa. No caso de um escritor, parte deles obedecem a uma ordem, e começa ali o processo narrativo. Sue Grafton descreve seu relacionamento com o lado direito do cérebro – quando está diante de um impasse na narrativa escreve notas para ele, pedindo ajuda. Zadie Smith fala do meio de um romance, em que acontece um processo de pensamento mágico: “O tempo entra em colapso, você senta para escrever às nove da manhã, pisca e já é de noite. Na tela estão 4 mil palavras, mais do que você escreveu em três meses de trabalho”.
Alcançar e manter este fluxo criativo não é um processo fácil ou contínuo. George Saunders demorou quatro anos para escrever o conto “Dia das mães” (o que ele se permitiu fazer por ganhar a vida como professor, e por ter a paciência e a sabesdoria exercitadas em décadas de meditação). Mark Twain acreditava que alguns romances e histórias inacabados precisavam ser esquecidos por alguns meses ou anos, para o autor voltar a eles com nova perspectiva e energia. “Rezar pode ajudar”, afirma Margaret Atwood, num conselho sobre escrita que reconhece o desespero inevitável do processo.
Macroplanejadores diminuem riscos e sofrimento ao tentar controlar os caminhos subjetivos da escrita, mas também perdem no processo parte do prazer. “Existe algo de maravilhoso ao ver uma figura emergir de uma pedra, ao sentir a presença de algo com você, e além de você. Alguma coisa consistente e boa, cujo objetivo parece ser o de levá-lo a uma existência superior”, diz George Saunders, para quem o verdadeiro artista sempre trabalha fora do domínio da lógica.
Para os macroplanejadores a figura também emerge da pedra, mas eles estão ali, já certos do formato que desejam construir. Ou, usando outra metáfora, agora de Zadie Smith – enquanto microgerentes constroem uma casa quarto por quarto, macroplanejadores constroem a casa para depois mudar a mobília de lugar –, podem começar a escrever um romance do meio para o início ou final, mudam o sexo dos personagens, criam diferentes desfechos.
Não existe resposta certa, apenas a escolha de um caminho que torne a escrita viável. “O escritor é aquele que, enquanto trabalha, não sabe o que está fazendo”, afirma Donald Barthelme. Penso que a afirmativa funciona tanto para microgerentes quanto para macroplanejadores. A diferença é que os primeiros dão um passo no escuro, enquanto os últimos acendem a luz, conferem o caminho, e depois fecham os olhos para melhor sentir os passos.