Leia a carta anterior.
Dom Reinaldo,
Começo por onde terminas. (Ih, de novo essa segunda pessoa interposta em nossa conversa. Audácia da sirigaita!) Começo por onde você termina: sim, que a próxima tertúlia seja às caras, em São Paulo ou no Rio. Onde preferir. Só peço que, antes, você insista na saudável prática do “xuá completo: cara-pé-cu, e todo o resto, cabelo inclusive, com bastante xampu”. Prometo fazer o mesmo, acrescentando barba, cabelo e bigode.
Invejo a chuvinha, o café requentado, as araucárias, os pijamas e os chinelões à la Jacinto de Thormes – o cenário, o conforto e a inspiração que você desfruta, meu velho, na labuta com as altíssimas palavras sob o abrigo do chalé da Mantiqueira. As minhas, as palavras que tenho usado ultimamente, ao contrário, são rasteiras, de encomenda, sem brilho, sem sal, meros caça-níqueis. Minha vidinha de escriba de aluguel está de doer. Até o burburinho das ruas aqui embaixo, do qual dei notícia na carta número 1, cessou de repente, com a chegada do inverno carioca. (Quem bate? É o friiiiiio!) Alta madrugada, ainda passa um imbecil falando alto no celular e perguntando se ela pode jogar as chaves pela janela. Quer trocar a sua metafísica pela minha melancolia?
Quando gentilmente você me recebeu para jantar em seu apartamento do Jardim Paulista, lembra?, uma noite borrascosa, se não me falha a memória, logo lobriguei sua admiração pela dupla Alvarenga & Ranchinho pela maneira de pronunciar a palavra “carne”, com o R triplicado e puxado. Fingi nada notar. Mas guardei a certeza de que, na tenra idade, o menino Rei não perdia uma apresentação deles na televisão e que, de tão fãzoco, fez com que lhe comprassem na feira livre do Butantã um chapéu de palha.
O que me traz de volta – pode-se fugir dela? – a onda de protestos. Arrefeceram? Um pouco. Mas o clima inda é de tensão, tipo barril de pólvora. Se os manifestantes não sabem bem o que querem, e muito menos o governo tem algo de concreto a propor, ao menos que adotem a marchinha Mamãe eu quero como hino oficial do furdunço. Os herdeiros do Jararaca hão de agradecer. O Jararaca, você sabe, era o craque que fazia dupla cômico-musical com o Ratinho, este no violão, aquele no clarinete e sax-alto. Ambos rivalizavam com Alvarenga & Ranchinho, uma confusão dos diabos!
Gravada pela primeira vez em 1937 por Jararaca, único autor que deu parceria ao cantor Vicente Paiva, Mamãe eu quero é uma das marchinhas mais cantadas de todos os tempos, um “imprevisível sucesso”, na avaliação dos pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, que só foi possível porque a gravação naqueles tempos era mais ou menos barata. Nasceu como brincadeira de estúdio, e, na verdade, tudo na música é brincadeira, comicidade, malícia, nonsense. Desde o prólogo, no qual Almirante – a maior patente do rádio – dialoga de improviso com Jararaca. No coro está o casal Cyro Monteiro – olha o Formigão aí de novo batendo ponto na nossa correspondência – e Odete Amaral, além de músicos extraordinários no acompanhamento: Luís Americano no clarinete, Canhoto no cavaquinho, Russo do Pandeiro. Quando Carmen Miranda a lançou como I want my mama no filme Serenata tropical (1940), sobreveio o estouro internacional.
Que Mamãe eu quero, neste grave momento do país, retorne, em triunfo, às ruas!
Mas passemos para “as boas coisas da vida”, expressão do agrado de Rubem Braga, tanto que a fez título do seu derradeiro livro de crônicas, publicado em 1988. Sensacional a máxima do Braga – “Certos espelhos deveriam refletir melhor antes de refletir certas mulheres” – que você resgata na cartinha número 3. De fato, todos nós, como os espelhos do Pirandello, devemos refletir melhor, não só diante de espelhos, na hora da verdade de lavar o rosto, como também diante de certas mulheres. A frase ficou meio confusa, pois não? Mas é isso mesmo. Passemos adiante.
O causo das cinzas de Rubem Braga procede – e você o narrou com estilo e propriedade. Só discordo de chamar a bela cidade de São Paulo de “forno crematório da crônica”, que é um passo à frente do já consagrado “túmulo do samba”. É que, à época, o Rio, sempre atrasado e ensimesmado, não dispunha de uma grelha mortuária. Como é de nosso enganoso costume, os cariocas sonhávamos viver para sempre, belos e formosos varões da praia.
Amigo Rei, sinto-me – creio que já o disse – melancólico nesta madrugada de terça-feira, dia 9 de julho, em que escrevo com um gorro alvinegro enterrado na cabeça. Estou disposto a fazer revelações, a confessar vícios, sai de baixo! Chegou o momento de, afinal, esclarecer o meu apadrinhamento por Nelson Cavaquinho. Seguinte: até hoje visto camisinhas de pagão.
A despeito dos rogos de minha mãe católica, meu pai, que não é lá muito católico, achou que, mais tarde, quando o filho tivesse juízo para decidir, que fizesse ou não o rito de passagem com água (imersão, efusão ou aspersão).
Acontece que meu pai sugeriu como padrinho de mentira o nome de Nelson Cavaquinho, a quem conhecera e de quem ficara camarada nas noitadas do mitológico Zicartola, restaurante aberto em 1963 num sobrado de três andares no número 53 da Rua da Carioca. Angenor de Oliveira, o Cartola, e Euzébia Silva do Nascimento, a Zica, moravam no terceiro andar. No primeiro o samba comia, com Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Ismael Silva, Aracy de Almeida. A plateia, em sua maioria, era de esquerda e classe média (parecida com a que, hoje, frequenta as arenas da Copa do Mundo). E detestava, sem motivo aparente, o Ataulfo Alves. Talvez porque este fazia sucesso nas rádios, ganhava algum dinheiro, andava de carrão, vestia-se muito bem (foi inclusive eleito um dos “mais elegantes” na coluna do Ibrahim Sued).
Nascido um ano antes da inauguração do Zicartola, eu não pude, por razões óbvias, acompanhar a farra. Mas cresci ouvindo histórias daquele lugar e daquela gente, e, logo que criei buço, fui tentar recuperar o tempo perdido. Beirava os 12 anos quando assisti pela primeira vez a um show de Nelson Cavaquinho, inesquecível em todos os aspectos. Foi em Santa Teresa, no meio de uma praça, a Odylo Costa Neto, sentado no chão com os outros espectadores.
Ao chegar, avistei Nelson Cavaquinho ao lado de Jair do Cavaquinho; os dois iriam dividir instrumentos no palco de poucos metros quadrados que mal dava para abrigar um deles. Além do sobrenome artístico em comum, Nelson e Jair foram parceiros num samba cuja letra mistura crueldade e hedonismo: “Vou partir/ Não sei se voltarei/ Tu não me queiras mal/ Hoje é Carnaval”.
Cabelos brancos, óculos de lentes grossas, camisa quadriculada para fora das calças de tergal, sapatos vulcabrás cambaios, Nelson brincava com Jair, tirando-lhe sarro, passando-lhe a mão na bunda. Antes da apresentação, me aproximei e fiz um pedido gaguejante: “Dá para cantar Caridade, por favor?”. A resposta veio seca, quase inaudível: “Não está no script”. Mas, lá pelas tantas do show, reconheci os primeiros acordes da música.
Curioso: Nelson Cavaquinho costumava sempre iniciar os trabalhos com Caridade, mas daquela vez os versos surgiram como que do nada. O autor não escondia sua preferência por este samba estranho que, a rigor, é um retrato íntimo:
Sei que a maior herança
que eu tenho na vida
é meu coração amigo dos aflitos
Sei que não perco nada em pensar assim
porque amanhã não sei o que será de mim.
Belíssimo e comovente, apresenta um estilo único de compor: a palavra final de cada verso quebra, como se fizesse parte do verso seguinte, o enjambement dos franceses. Além disso, Caridade, como outros do Nelson, termina na segunda parte, quando geralmente os sambas voltam ao último verso da primeira na hora de acabar (este recurso faz com que as composições possam ter o verdadeiro autor identificado, e isso, em se tratando de um vendedor de sambas consumado como Nelson Cavaquinho, é de utilidade pública e histórica).
Em 1938 Carlos Cachaça teve uma tendinha no Chalé, bairro do Morro de Mangueira, onde vendia de tudo, mas o forte era cachaça e sardinha frita. Lá iam Cartola, Zé da Zilda, o compositor Moacir Bernardes, um camarada conhecido como Jiló, que era condutor de bonde, o Barra Mansa, futuro presidente da Estação Primeira. E Nelson Cavaquinho, que tomava porres de juntar criança e dormia em cima do balcão ou na porta da tendinha.
Depois Carlos e Nelson moraram juntos, num barraco nos altos do Pindura Saia, que batizaram com o nome de Fenianos, o mesmo da grande sociedade carnavalesca, rival dos Democráticos e dos Tenentes do Diabo nas ruas do Rio. Viviam sob o mesmo teto de zinco, mas não coincidiam nos horários. Lembre que Carlos Cachaça, mesmo honrando o apelido com vigor, foi funcionário exemplar da Rede Ferroviária Federal, na qual trabalhou durante quarenta anos, até a aposentadoria, sem faltar uma vez ao serviço. Nelson Cavaquinho, ao contrário, teve vida desregrada, não amiga do trabalho.
Pois Carlos só cruzava Nelson quando saía de manhã cedo para o batente, e este estava voltando da farra. Trazia o violão embaixo do braço e um samba composto. Quando descia o morro, no meio da tarde, depois de curar a ressaca com algum caldo, já tinha feito outro samba, cuja qualidade ia testar nos botequins da Praça Tiradentes com eventuais compradores.
Depois do show inaugural de Santa Teresa, qual minha felicidade ao entrar num boteco da Rua Mem de Sá, tempos da Lapa pré-colombiana, e encontrar Nelson encostado no balcão e no violão, pronto a transformar, como dizia Albino Pinheiro, qualquer um que estivesse a sua volta em público. Antes, esteve no banheiro. Na volta, molhou o pente Flamengo na bica da pia e o levou aos cabelos prateados, num gesto de vaidade milongueira. Antes, ainda, chegou para o português e pediu: “Me dá um óleo”, combustível que consistia em conhaque servido até a borda naqueles copos vagabundos americanos.
Como nas letras do padrinho, “meus olhos estão rasos dágua” ao lembrar tudo isso. Vejo o violão de cordas de aço, dedilhadas com palheta nervosa; escuto a voz enrouquecida e rascante. É como se a voz fosse ela própria a melodia e os versos, numa simbiose perfeita, autômata, bêbada.
Perdão pelo abrupto da interrupção. Mas não posso mais. Vou ali chorar um pouquinho e volto quando puder.
Do seu mano,
Marechal