Moralismo automatizado

Colunistas

03.08.16

Em 27 de junho, sem nenhum aviso prévio, o Google tirou do ar o blog mantido havia dez anos pelo escritor americano Dennis Cooper e cancelou sua conta de email. Todas as tentativas do escritor de obter uma explicação da empresa foram ignoradas. Cooper é um escritor controverso, autor de uma prosa radical e perturbadora, na qual personagens gays masculinos praticam atos de sadomasoquismo, confundindo violência, desejo e morte. Natural de Los Angeles, vive há anos em Paris e tem uma legião de admiradores, entre jovens leitores, artistas experimentais e críticos dos mais interessantes. É publicado nos Estados Unidos pela independente e prestigiosa Grove Press. Ficou conhecido em 1989, com o romance Closer, o primeiro de um ciclo que inclui Frisk e Try.

Por ocasião do lançamento deste último, em 1994, Cooper disse em entrevista à revista Bomb: “É claro que ninguém faz sexo assim. A menos que você seja um psicótico de carteirinha. (…) Fico fascinado por gente que pode despersonalizar outros seres humanos e reduzi-los a fontes de informação. Quando um cirurgião te opera, você não passa de uma máquina mole (soft machine), como dizia Burroughs. (…) Escrevo sobre o que me faz morrer de medo. (…) Mas sou um formalista. (…) E é estranho que seja atacado pelo conteúdo dos meus livros. (…) Frisk devia parecer um corpo esquartejado, (…) como se o autor tivesse esquartejado o romance do jeito que um assassino desmembra um corpo”. Admirador de Rimbaud, de Sade e de Blanchot, Cooper considera o cineasta católico Robert Bresson, diretor de Pickpocket e Mouchette, sua maior influência.

Nos últimos dez anos, seu blog (DC) acolheu gente do mundo inteiro, escritores, artistas, músicos e editores – como Hedi El Kholti, da celebrada revista Semiotext(e) – interessados em cultura experimental. Além dos posts que ele atualizava seis vezes por semana, Cooper usava o blog para experimentações narrativas, como um romance sem palavras, inteiramente composto de GIFs (animações curtas em loop) encontradas na rede. O romance desapareceu com o blog.

É possível que o Google tenha agido menos por censura deliberada do que por simples erro, fruto de ignorância ou automatismo, ao associar o conteúdo de um blog literário experimental (que também incluía anúncios de michês, compilados da internet e editados pelo escritor com o intuito de destacar seu aspecto poético) à lista de violações dos termos de uso da empresa (pedofilia, prostituição etc.). Um abaixo assinado que já conta com mais de quatro mil assinaturas circula atualmente na internet para que o Google devolva o conteúdo do blog ao autor.

O caso de Cooper me fez lembrar de uma anedota recente. Um amigo artista plástico, Roberto (o nome é fictício), precisava alugar uma “minicarregadeira” para transportar uma escultura. Meu amigo estava dirigindo, no trânsito, quando lhe ocorreu consultar o aplicativo que permite aos usuários de celular fazer perguntas e acessar a internet por viva-voz. Perguntou ao celular onde poderia achar um “serviço de Bobcat” (Bobcat é a marca das máquinas de transporte que meu amigo procurava). A resposta foi imediata, na voz metálica, feminina e indignada do autômato: “Serviço de boquete? Que feio, Roberto!”. Meu amigo escultor, que tinha optado pelo aplicativo de viva-voz justamente para evitar um acidente no trânsito, teve um ataque de riso e por pouco não bateu o carro. É incrível que o fabricante do celular tenha se dado o trabalho de programar o software para passar um corretivo no usuário que procurasse um “serviço de boquete”.

Empresas privadas têm o direito de estabelecer as regras de conduta que bem entenderem aos usuários, regras que podem estar baseadas no moralismo mais tacanho de seus diretores e acionistas ou em puro interesse comercial. Faz parte do contrato. Se os usuários não estiverem satisfeitos, podem boicotar a empresa ou simplesmente pagar pelos produtos e serviços das concorrentes. O que mais assusta no exemplo da remoção do blog de Dennis Cooper pelo Google é a suposição, por uma empresa em princípio jovem, moderna e liberal, de que deve haver limites, sem distinção para a arte e a literatura, na exploração de certas áreas do espírito humano; a suposição de que haja aspectos do espírito humano que devem ser mantidos na sombra e em silêncio.

Um dos filmes mais originais em cartaz em São Paulo, o venezuelano De longe te observo (Desde allá), de Lorenzo Vigas, vencedor do Leão de Ouro no último Festival de Veneza, trata justamente de um personagem cujos meandros são difíceis de seguir, pois vão dar nessa zona sombria à qual Dennis Cooper se refere quando diz que escreve sobre o que o deixa apavorado. O filme, que conta o encontro entre um voyeur de meia-idade e um trombadinha, contradiz o clichê do gay solitário e indefeso, com tendências masoquistas, atraído pelo sexo perigoso, à mercê dos riscos do desejo. O final surpreendente é uma lição para os moralistas de ocasião e os paladinos desse novo moralismo automatizado: a inocência e a fragilidade nem sempre estão onde procuramos defendê-las, assim como a maldade e a violência nem sempre estão onde as combatemos.

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