Do caos à arte

No cinema

13.05.16

Com algum atraso, compartilho algumas impressões sobre Nise: o coração da loucura, de Roberto Berliner, um dos principais lançamentos brasileiros do ano até agora.

As cinebiografias tornaram-se nos últimos tempos um gênero à parte no Brasil: de Cazuza a Irmã Dulce, de Tim Maia a Chico Xavier, de Lula a Paulo Coelho, muitos são os biografados, mas, no fundo, poucas são as variações na estrutura dramática e narrativa adotada para retratá-los.

Conflito e redenção

Trata-se, quase invariavelmente, de seres eleitos ou iluminados, “maiores que a vida”, que sofrem no confronto com uma realidade adversa até conseguir a redenção, a consagração ou o reconhecimento final. O cinema torna-se praticamente mero veículo de ilustração de uma trajetória exemplar. A hagiografia se sobrepõe à criação cinematográfica.

Se Nise não escapa totalmente desse esquema, alarga significativamente seus limites, ou ao menos busca incorporar em sua própria forma alguns dos temas centrais à biografia da protagonista.

O filme começa no momento em que a psiquiatra Nise da Silveira (Glória Pires) retorna ao centro psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio, depois de ter amargado prisão e clandestinidade na ditadura de Getúlio Vargas. Ali ela encontra uma prática psiquiátrica “cientificista” e repressiva, fundada em eletrochoques, isolamento dos doentes mentais e, nos casos extremos, lobotomia.

A partir dessa situação, o diretor Roberto Berliner, experimentado e criativo documentarista, desenvolve três ordens básicas de conflito dramático: Nise contra o establishment médico-psiquiátrico; Nise e sua relação com os pacientes (que ela chama de “clientes”); Nise e sua relação com a pesquisa, o conhecimento, o pensamento (resumida em seu intercâmbio com Jung).

Mas há um quarto ponto de tensão que talvez seja o mais interessante: a delicada e instável interação entre os “loucos” e os “sãos”, mais precisamente entre os internos do hospício e aqueles que com eles se relacionam: enfermeiros, terapeutas, serventes, professores, familiares.

Aprendizado recíproco

O efeito transformador desse contato é resumido exemplarmente na trajetória do personagem Lima (Augusto Madeira), funcionário que passa da brutalidade sádica à solidariedade e à compaixão pelos internos. Há algo de exagerado e inverossímil nessa metamorfose, o que indica que é ali que o cineasta enfatiza seu ponto, a saber: a convivência com o louco humaniza e enriquece o “são”.

Com essa chave, tudo ganha uma nova luz: a terapia ocupacional deixa de ser mera recreação para ser exercício de convívio, o tratamento humanizado deixa de ser “caridade” para ser aprendizado recíproco, os trabalhos artísticos dos internos deixam de ser olhados com condescendência e passam a ser obras de descoberta e alargamento de horizontes.

Em sua construção narrativa, Nise trafega do caos à ordem. As primeiras sequências mostram, do ponto de vista da biografada, imagens repugnantes de sujeira, destroços, descaso. Uma oscilante câmera na mão perscruta corredores sombrios e fragmentos de ambientes: entulhos, cantos escuros, dejetos, cacos, restos, por entre os quais transitam como zumbis seres imersos parcialmente na sombra, cujos rostos não conseguimos distinguir muito bem.

À medida que a doutora Nise vai impondo sua filosofia humanista, os ambientes se iluminam, a imagem se desobstrui, os enquadramentos tornam-se mais equilibrados, a câmera firme, os planos mais distendidos. Há uma analogia entre esse processo e a evolução da pintura do interno Fernando Diniz (Fabricio Boliveira), tal como a descreve a psiquiatra a certa altura do filme.

Essa jornada do caos à forma, da escuridão à luz, condiz, evidentemente, com a trajetória pessoal e intelectual da verdadeira Nise da Silveira (1905-99), uma das figuras mais importantes da cultura brasileira no século 20. Se há um forte contraste entre a ação luminosa da personagem e o quadro dantesco com que ela se defrontou, é porque isso está muito próximo da realidade.

Documento e ficção

Duas últimas observações: assim como quase todas as cinebiografias ficcionais recentes, também Nise termina com um epílogo documental em que aparecem os personagens reais retratados – no caso, a própria psiquiatra, já velhinha mas plena de verve e humor, e alguns de seus pacientes artistas: Carlos Pertius, Fernando Diniz, Adelina Gomes. Como costuma acontecer, esse registro brutalmente real de certa forma empalidece a recriação ficcional que veio antes, revelando de chofre seu caráter artificial, de “faz de conta”.

Isso remete à segunda observação: quem quiser conhecer melhor o trabalho de Nise da Silveira e a produção artística de seus “clientes” deve assistir ao monumental documentário Imagens do Inconsciente (1987), dirigido por Leon Hirszman e coescrito pela própria Nise. Foi lançado há alguns anos em DVD pelo Instituto Moreira Salles e é uma das grandes obras do nosso cinema. Aqui, como aperitivo, um trecho do Posfácio que faz parte dos extras:

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