Às vezes a melhor legenda sobre o que temos diante de nossos narizes vem lá de trás, de um lugar perdido no tempo. A lição está em Ezra Pound (que resumiu no moto “make it new” a necessidade de recuar em outras épocas e tradições para melhor projetar-se para a frente), em Paulinho da Viola (“quando penso no futuro/não esqueço meu passado”) e na obra e na vida de qualquer um que não tenha comprado a grande patacoada filosófica dos anos 1990, a confortável ideia do fim da história. Francis Fukuyama, o cretino que a formulou, desfruta, aliás, de uma merecida obscuridade graças à inconsistência oportunista de sua própria tese.
Assistir a Libertem Angela Davis (em exibição no IMS-RJ) no calor da corrida presidencial brasileira é, por isso, melhor do que todo o noticiário junto. O documentário de Shola Lynch sobre o processo movido contra a ativista negra americana nos Estados Unidos dos anos 1970 mostra abundantemente o que nos falta hoje, no Brasil dos 2000: política. Não se trata de política nova ou velha, mas de política em seu sentido renovador, incômodo e polêmico. Para usar a formulação lapidar de Jacques Rancière, a política só acontece quando há desentendimento, quando aquele que não pode falar em determinado momento ou lugar toma a palavra para dizer o que não se quer ou espera que diga.
Nos EUA dos anos 1970, Angela Davis era o desentendimento em pessoa, literalmente. Negra, jovem, bela, olhar altivo e sereno, havia estudado filosofia na Alemanha e iniciava uma carreira de professora na Universidade da Califórnia, estado então governado por um certo Ronald Reagan. Feminista radical, era filiada ao Partido Comunista e apoiava ostensivamente o grupo armado Panteras Negras. Exercendo um direito líquido e certo para os brancos (mas não para os negros), comprou uma arma, já que não eram raras as ameaças de morte que recebia, ecoando os tiros em Martin Luther King e Malcolm X.
Essa arma foi parar na mão de um jovem militante, que a usou para sequestrar um juiz e três juradas de um tribunal no condado de Marin. Cercado pela policia, Jonathan Jackson, este o seu nome, terminou matando o juiz. Era o que Reagan e Mr. Richard Nixon, o presidente, precisavam para deter Angela, cuja expulsão da universidade era acalentada pelo governo: se a arma estava em seu nome, ela era culpada. Depois de figurar no top ten da lista das pessoas procuradas pelo FBI, Angela foi presa e, por quase dois anos, sofreu um ardiloso processo cujo objetivo era levá-la à câmara de gás. É essa luta, puxada por uma campanha mundial e encerrada com sua absolvição por um júri formado por brancos, que o documentário mostra de forma emocionante.
O cenário de radicalização vivamente exposto pelo filme é, sem dúvida, tributário da época. Mas é atemporal (e não nostálgico) por mostrar como a firme defesa de posições e convicções, feita de enfrentamentos e incansáveis discussões, é (ou deveria ser) uma obrigação moral de quem faz política, como candidato ou eleitor. Uma obrigação ainda mais premente depois que, com o suposto fim da polarização ideológica da chamada Guerra Fria, todos os discursos de mudança tenham sido esvaziados de sua contundência. Nos anos 1980, virou moda dizer que esquerda e direita não existiam, que era absurdo acusar alguém de, por exemplo, reacionarismo. A metáfora espacial deste pensamento era o Centro, lugar tão real quanto a Cocanha ou Pasárgada.
Foi esse mundo, produto de um acordo cósmico contra o embate para valer de ideias e posições, que se reeditou este ano nas eleições brasileiras. E o que mais se ouviu nos últimos meses foram apelos a um quimérico “consenso”, a uma “união pelo país”, pelo país “acima de tudo” que dá até arrepio. Mas o pior mesmo, o mais danoso, é que esse consenso vem acompanhado da condenação veemente das fricções. De todo o espectro político, sem exceção, saíram do armário hordas de vestais escandalizadas com refregas de campanha, em chororô magoado com o “baixo nível” dos candidatos ou advertências soturnas sobre o “risco” de se aumentar o voto nulo – que, diga-se logo, é posição política mais do que legítima. A retórica de padreco, desenxabida, criou um plantel de “razoáveis”, “imparciais” e “equilibrados”. Um plantel que, na prática, terminou por desmoralizar a indignação, travestida como discurso genérico sobre moralidade pública e o bem comum.
Georges Didi-Huberman, que é filósofo, francês e, como Angela Davis, não vai votar no Brasil, lembra o quão difícil é tomar posição: “Não há nada de simples em tal gesto. Tomar posição é se situar pelo menos duas vezes em pelo menos duas frentes implicadas em toda posição, já que toda posição é, fatalmente, relativa. Trata-se, por exemplo, de se confrontar com alguma coisa; mas, diante dessa coisa, devemos ainda levar em conta tudo que deixamos de lado, o fora-de-quadro que existe por trás de nós, que talvez recusemos mas que, em grande parte, condiciona nosso próprio movimento e, portanto, nossa posição. Trata-se, da mesma forma, de se situar no tempo. Tomar posição é desejar, é exigir alguma coisa, é se situar no presente e vislumbrar um futuro”.
Desejar, exigir, se situar no presente, vislumbrar o futuro. Foi isso que Angela Davis, os Panteras Negras e simpatizantes de todo o mundo fizeram à custa de um desentendimento tão profundo que envolveu morte, prisão, processo, rompimentos e discussão. Mas, em nosso peculiar dicionário político, desejar, exigir e se situar (para vislumbrar o futuro) viraram sinônimos de acordos e consensos. São verbos cuja conjugação supostamente exclui as refregas, inevitáveis quando eles são usados de forma honesta e consequente.
Política para valer, que vale a pena, lembra a História, não se faz com a tepidez dos bons modos. Pois eles sempre favorecem aqueles que não querem sair do lugar.