O erotismo puro de Bororó

Música

20.03.12

Muito antes de Michel Teló, a sensualidade da música brasileira já causava furor no estrangeiro. Domingos Caldas Barbosa foi o primeiro artista a excursionar com imenso êxito pelo exterior. Levou para a Lisboa da segunda metade do século XVIII “a primeira manifestação da sensibilidade e do sentimento musical do povo brasileiro – o lundu e a modinha” – nas palavras de Mozart de Araújo. Vejam bem: modinha, diminutivo de moda (nome que na época designava a música popular em geral), definindo, talvez junto com o lundu, nosso primeiro gênero de canção. Modinhas brasileiras diferenciando-se decisivamente das modinhas portuguesas. E diferenciando-se no quê? No ritmo coalhado de síncopes e no malicioso erotismo da poesia. Imagino os risinhos “escandalizados” das donzelas lisboetas, coradas de prazer e vergonha, enquanto escutavam, num salão da corte, Caldas Barbosa tanger as cordas de sua viola-de-arame (uma guitarra vulgar), espalhando no ar lânguidas modinhas d´além mar. Muitos devem ter sido os maridos ciumentos que sentiram raiva daquele padre tão musical, um mulato carioca que chegou à metrópole portuguesa no auge de seus 32 anos, disparando em amolengado português brasileiro suas canções repletas de nhonhôs, iaiás, nhanhazinhas, mugangueirinhas… Canções imantadas por uma deliciosa energia erótica.

Caldas Barbosa pode ser considerado o pai ancestral de uma linhagem de músicos populares do Brasil. Muitas figuras importantes pertencem a essa linhagem, mas uma, em especial, desde sempre me fascinou: Bororó. Por conta desse fascínio decidi escrever um pequeno programa para a Rádio Batuta, que inaugura a série Tubo de Ensaio. É um verdadeiro enigma pensar em como um compositor algo periférico na história de nossa música, que jamais figurou entre os grandes, foi, contudo, capaz de compor duas obras-primas inquestionáveis: Da Cor do Pecado e Curare. Duas músicas com tão exuberante personalidade que chegam a quase inaugurar um estilo próprio. Mas não inauguram. E assim não estabelecem filiação, não geram desdobramentos significativos, ficando então suspensas – acho que um pouco por isso João Gilberto foi resgatá-las do esquecimento, aquecendo-as com uma atualidade também extemporânea. As duas canções-mestras de Bororó elevam o erotismo que desde cedo embalou a “sensibilidade e o sentimento musical do povo brasileiro” a um nível tão extremo de realização, que nele já não se acha qualquer vestígio de vulgaridade. E o curioso é que esse erotismo puro, decantado, seja alcançado não por uma recusa ou por um distanciamento dos elementos tradicionalmente tidos como vulgares (a carne, o sexo), mas pela exaltação livre destes mesmos elementos.

Por uma série de manobras poético-musicais, nas duas canções o corpo é plenamente afirmado em sua alegria física, sem que venha a se tornar uma coisa, um objeto oco, sem rosto, em total submissão frente aos impulsos básicos do organismo, da matéria. Poucas vezes a canção chegou tão perto da cafonice (“você tem boniteza”, “esse beijo molhado escandalizado”), e, talvez por isso mesmo, poucas vezes foi tão plenamente elegante. O “corpo moreno, cheiroso e gostoso” – literalmente inspirado no corpo de uma prostituta com quem Bororó parece ter tido um caso, uma prostituta com o sugestivo nome de Felicidade (maravilha de metáfora!) – ganha vida ao ser insuflado pelo afeto específico da palavra cantada. Ao mesmo tempo, paira sobre esse corpo, sobre a própria Felicidade, a sombra do escravismo, do corpo feito mercadoria, submetido cruamente à vontade do outro. Talvez venha daí a dolência das canções de Bororó, seu quê de tristeza, o tempero de dor que elas abrandam e diluem sem, contudo, apagar. E aqui também se revela o tênue fio que as ancora no momento histórico em que foram produzidas. Mas isso está dito no Tubo de Ensaio, e não precisa ser repetido.

* Na imagem da home que ilustra esse post: “Abigail”, quadro de Di Cavalcanti

, , , , , , , , ,