O gorila e o mundo vertiginoso de Belmonte

No cinema

29.06.15

Depois de passar inexplicáveis três anos na geladeira dos exibidores, O gorila (2012) chega aos cinemas sem ter perdido nem um pouco do seu viço, e menos ainda da sua atualidade. O filme de José Eduardo Belmonte, baseado em novela publicada em 2003 por Sérgio Sant’anna (no livro O voo da madrugada), trata de questões centrais de nossa época: a invasão da privacidade, a pornografia virtual, a tênue fronteira entre o real e sua representação.

O protagonista é um dublador de séries de TV (Otávio Muller, excelente), quarentão solitário que assedia mulheres desconhecidas (e um homem) com telefonemas obscenos, nos quais se identifica como “o Gorila”, chegando a imitar os sons do bicho. Ele entra em crise paranoica ao ver-se identificado por uma de suas vítimas (Mariana Ximenes) e julgar-se responsável pelo suicídio de outra. Como sinopse, isso basta. Cabe acrescentar, talvez, que o Gorila é atormentado por lembranças da relação com a mãe (Maria Manoella) e por um problema grave nos dentes.

Mas, assim como no texto de Sérgio Sant’anna, no filme o enredo é apenas um dos elementos que contam. Tão importante quanto a história é o modo como nela se embaralham e sobrepõem camadas de sugestões e significados.

Espaço delirante

No começo da narrativa, cada coisa está no seu lugar – os telefonemas, as lembranças, o trabalho de dublagem – e o Gorila pisa seu chão com segurança. Tem o controle, por assim dizer, da produção do imaginário. Ao telefone, sua voz cria cenas e atmosferas eróticas; ao microfone do estúdio, dá vida ao personagem McCoy. A mãe lhe aparece com a luz estourada e as cores saturadas características dos flashbacks oníricos.

Cena de O gorila

As coisas se complicam – e ficam mais interessantes, do ponto de vista cinematográfico – quando esses vários planos começam a interpenetrar-se, de tal maneira que deixa de haver diferença de espessura entre imaginação e fato, entre real e ficção. A mãe, McCoy, as mulheres assediadas, o passado e o presente, tudo passa a conviver no mesmo espaço delirante, vertiginoso, movediço.

O forte do diretor Belmonte sempre foi a maneira como lida com personagens em crise, aturdidos, contaminando o próprio tom da narrativa com esse aturdimento. É, por assim dizer, um cinema trôpego, que parece cambalear junto com suas criaturas. Nem sempre dá certo, mas o erro faz parte do pacote, sempre que um cineasta decide arriscar. Quando adere afetivamente à loucura de seus protagonistas, tornando-a fonte de lirismo e invenção – como em Se nada mais der certo O gorila –, Belmonte atinge seus melhores momentos.

Literatura multimídia

Um último comentário sobre Sérgio Sant’anna. Não dever ser por acaso que seus contos e novelas estão entre os mais adaptados pelo cinema brasileiro contemporâneo.

De Bossa nova Crime delicado, passando por Um romance de geração O gorila, os resultados são desiguais, mas há em todos a perseguição de uma vocação cinematográfica já contida no original. Em outras palavras: a literatura de Sant’anna é virtualmente multimídia, não só pelo fato de alimentar-se de referências ao cinema, às artes visuais, ao teatro e à música, mas também por jogar sempre com os temas e formas da representação, como se hoje em dia o próprio “real” já estivesse contaminado irremediavelmente por sua refração no imaginário, pelos inúmeros filmes, canções, quadros e peças de teatro que compõem nossa memória afetiva.

Ao dar voz ao personagem McCoy, o dublador solitário, em alguma medida, passa a sero próprio McCoy; ao inventar o tarado Gorila, converte-se nele. É essa apropriação do real pela ficção que está no cerne da arte de Sérgio Sant’anna – e, ocasionalmente, na de José Eduardo Belmonte.

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