Era uma vez na Anatólia estreia com exclusividade no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro no sábado de carnaval, dia 1o de março, e será exibido até o dia 25.
Em Era uma vez na Anatólia tudo, ou quase tudo, ocorre em torno de uma conversa sobre a consistência do bom iogurte.
Policiais buscam o local em que se encontra enterrada a vítima de um assassino que acabam de prender. O assassino está com eles, num dos carros que avança estrada afora, noite adentro, em busca de um local com uma grande árvore – o réu confesso recorda-se de ter enterrado a vítima ao lado de uma grande árvore redonda. Nos carros, com os policiais, o promotor e o médico legista. O preso segue calado e os demais não falam propriamente do crime. Discutem as características do iogurte feito na Turquia, superior ao produto industrializado feito aqui e ali. Discutem o que provoca a morte de alguém. O promotor, por exemplo, sustenta que uma pessoa pode morrer sem causa alguma, sem doença alguma, como ocorreu com a mulher de um amigo. O legista contesta. O motivo pode não ser descoberto, mas sempre se morre ou se mata por uma causa precisa e localizável. Do crime em questão, não se fala. O que prende a atenção é conversa sobre a qualidade do verdadeiro iogurte, sua consistência: pode ser cortado com uma faca, defende um deles, ao contrário das imitações falsas e sem sabor vendidas como fossem iogurtes de verdade.
Em quadro, o iogurte. A aventura policial permanece quase todo o tempo fora de quadro – sem no entanto sair do centro da cena. Entre outros motivos porque, encontrado o corpo da vítima, solucionado o crime, o espectador descobre que, oculta pela solução do assassinato, a verdadeira história do crime permanecerá fora de quadro. E também, ou principalmente, porque a morte misteriosa que de fato se esclarece não é a que os policiais, o promotor e o legista investigam, mas a da mulher do amigo do promotor. O que os personagens investigam é um crime de certo modo já solucionado, e o que o espectador investiga, convidado pelo modo de narrar do filme, é outra história – mais exatamente, outras histórias, a da razão do criminoso que enterrou o cadáver ao lado da árvore grande e redonda (uma traição conjugal?) e a razão da morte planejada da mulher do amigo do promotor (uma outra traição conjugal?).
O iogurte e a investigação policial em primeiro plano encaminham a correta percepção da história que não se vê na tela, ocorrida num tempo anterior ao do filme. Essa história invisível é o verdadeiro drama narrado por Nuri Bilge Ceylan em Era uma vez na Anatólia. O crime de agora prepara a compreensão de uma outra morte. A conversa sobre o iogurte que pode ser cortado a faca é uma metáfora do estilo de construção da narrativa e da questão que ela discute: um mistério não mais denso que um iogurte, mas invisível para olhos acostumados às imitações industriais que tiraram do olhar a precisão do corte de uma faca.
* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.