Uma das grandes atrações da 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo será a homenagem a Stanley Kubrick (1928-1999), que inclui retrospectiva da obra, exposição de objetos, lançamento de um grande livro e debates, além da presença da viúva do diretor, Christiane Kubrick.
Esse banquete para os admiradores do autor – e cinéfilos em geral – começa já no próximo dia 11, no MIS, uma semana antes da abertura da 37ª Mostra propriamente dita. Serão exibidos doze dos treze longas de Kubrick (o único ausente é o primeiro, o renegado Fear and desire), além de documentários sobre o diretor, paralelamente a uma exposição que inclui fotos, figurinos, maquetes, roteiros e objetos de cena usados nos filmes. Aqui, o trailer de Stanley Kubrick – A life in pictures, um dos documentários programados:
http://www.youtube.com/watch?v=Wqx1CznPIb8
A retrospectiva é uma oportunidade única de imersão na obra de um dos gigantes do cinema moderno, e também um momento privilegiado para verificar a coerência radical de uma filmografia que, apesar de relativamente pouco numerosa, é tão diversificada em temas e gêneros.
Pois, para além do talento evidente, das proezas técnicas, do agudo senso do espetáculo e da inteligência vertiginosa de Kubrick, a grande questão é: em que consiste a sua “autoria”? O que unifica filmes aparentemente tão díspares como a fantasia futurista 2001, o drama de época Barry Lyndon e a sátira antibélica Dr. Fantástico? O que há em comum entre O iluminado, Lolita e Nascido para matar?
Civilização e barbárie
Arrisco alguns palpites. A meu ver, o eixo em torno do qual se desenvolve a obra de Kubrick é a tênue linha entre a razão e a loucura, examinada dos mais variados ângulos e desdobrada em outros binômios: cultura e barbárie, guerra e paz, repressão e liberdade, Eros e civilização.
É nessa corda bamba que caminham o professor Humbert Humbert de Lolita, o astronauta Dave Bowman e o computador HAL de 2001, o escritor Jack Torrance de O iluminado, o parvenu setecentista Barry Lyndon, o soldado Joker de Nascido para matar e tantos outros personagens perturbadores e inesquecíveis.
As obsessões mais conhecidas de Kubrick, xadrez e tecnologia, seriam modos de controlar sua própria loucura, mas aqui invadimos perigosamente o terreno da psicanálise de botequim. O fato é que uma outra paixão duradoura do cineasta permeia ostensivamente toda a sua obra: a fotografia, que ele exerceu desde a adolescência, trabalhando como fotojornalista da revista Look.
Construtor de imagens
Kubrick é, antes de qualquer coisa, um construtor de imagens. Poucos cineastas deixaram tantas delas impressas indelevelmente em nossas retinas. É possível fazer mentalmente um “cineminha” de cada um dos seus filmes a partir de alguns planos cruciais. Em 2001, por exemplo, os macacos em luta, o monólito à contraluz, o osso lançado ao ar que “vira” espaçonave, o interior do computador HAL, as imagens psicodélicas do astronauta solto no espaço.
Em Laranja mecânica, Alex e comparsas espancando um velho sob um viaduto, violentando uma mulher ao som de Cantando na chuva, Alex com os olhos mantidos abertos com presilhas para ver filmes repugnantes, Alex envolto em talas e bandagens sorrindo e fazendo positivo para a câmera.
Planos de uma beleza frequentemente terrível, em que a estética é sempre a expressão de uma ética das imagens. Não há, nesse cinema, cenas supérfluas ou enquadramentos meramente ornamentais. Tudo é pleno de significado e força dramática.
Mundo em convulsão
E o mundo imagético de Kubrick não é de contemplação ou meditação sobre o decorrer do tempo, como seria o caso de Ozu e, em outros sentidos, de Antonioni, Wenders ou Tarkowski. É um mundo em movimento, para não dizer em convulsão.
No variado arsenal narrativo/expressivo que ele manipula com virtuosismo, destaca-se uma figura de estilo recorrente: o travelling frontal, seja de avanço (como a steadycam que acompanha o triciclo do pequeno Danny pelos corredores do hotel de O iluminado) ou de recuo (como o que abre espaço para o celerado Jack Torrance no mesmo filme; ou o que registra a revista dos recrutas pelo igualmente celerado sargento Hartman em Nascido para matar). Movimentos que nos aprofundam no desconhecido (no primeiro caso) ou nos expõem à explosão da loucura, à insanidade da guerra, à confusão do mundo.
Nesse cinema visionário e implacável, isento de concessões sentimentais ou mensagens edificantes, chama a atenção um raro momento de “descontração do olhar”, de amansamento da barbárie por força do afeto e da arte. É o antológico final de Glória feita de sangue, em que, numa taverna, soldados rudes e bêbados se rendem a uma atmosfera de humanidade compartilhada ao ouvir uma jovem alemã desafinar uma canção popular. Que Kubrick tenha se casado com a moça responsável por esse instante mágico, e vivido ao lado dela o resto de seus dias, talvez seja um indício de que no peito daquele urso recluso também batia um coração.