O samba inebriado de Paulinho

Música

09.11.12

Neste 12 de novembro de 2012, Paulinho da Viola completa 70 anos. Datas redondas acabam nos levando a refletir sobre trajetórias e, no caso, sobre sua produção artística. Fiquei pensando, então, qual seria seu melhor disco. Pergunta retórica, quase sem resposta. Paulinho é autor de clássicos do repertório do samba, com mais de quatro décadas de atuação intensa no mercado musical, e qualquer afirmação mais categórica nesse sentido torna-se imediatamente alvo de dúvidas e críticas. Memórias Cantando? Zumbido? Eu canto samba? São discos memoráveis, brilhantes, mas para mim o melhor de todos é Bebadosamba. É claro que, para justificar isso, preciso desenvolver argumentação extensa, fundamentada, convincente. Não sei se sou capaz de tanto, mas vou me arriscar a pelo menos tentar.

Para começar, convém relembrar o contexto do lançamento do disco. No início dos anos 1990, o Brasil viveu, no plano político, anos conturbados. Eleições diretas, abertura de importações, extinção de órgãos de fomento à cultura, impeachment, planos econômicos e uma atmosfera de intenso debate social matizaram a última década do século. Nesse período, o CD estabelece-se como produto preferencial da indústria fonográfica, gerando dividendos crescentes para as empresas e potencializando um mercado de nichos que se tornaria viável alguns anos depois. No mercado musical, a hegemonia da nova música sertaneja, do axé e do pagode romântico apontava para a explosão da vertente pop na canção nacional. O funk, o tecnobrega e o forró eletrônico aparecem exatamente na mesma época. Bandas como Raça Negra, Só Pra Contrariar e Negritude Junior cantam em coro, em ritmo de samba, o amor. Mas uma visão assumidamente otimista do amor, acompanhado por levadas suingadas e instrumentação pouco usual (teclados, saxofones e baterias são utilizados em profusão por esses grupos). E viram vidraça. Passam a ser sistematicamente criticadas por jornalistas, sambistas e toda a intelectualidade nacional. Nesse momento, os artistas identificados com o samba tradicional eram empurrados comercialmente para espaços periféricos, em rodas, palcos e guetos de menor visibilidade midiática. O discurso elaborado por esses setores desenhava um quadro de desvalorização da cultura, da tradição, da autenticidade e da qualidade da música brasileira, associado ao “pagode”.

Em 1995, o sucesso estrondoso de Samba pras moças, de Zeca Pagodinho, e Tá delícia, tá gostoso, de Martinho da Vila, alteraram um pouco esse cenário. Esses discos apontavam para a consolidação de um mercado de samba mais diversificado, que absorvia as novas sonoridades do pagode romântico, mas que parecia garantir espaço para os sambistas tradicionais. Do mesmo ano e com vendagem semelhante (cerca de 1,5 milhão de cópias), o disco O samba não tem fronteiras, do Só Pra Contrariar, reivindica o valor estético do pagode romântico e a pluralidade estilística do samba no mercado. A música-título deste disco apresentava com muito bom humor um samba esteticamente variado, capaz de absorver elementos “de leste a oeste e de norte a sul” do país. Assim, a proposta de Alexandre Pires, Régis Danese e Luiz Claudio (os compositores da canção) era alargar as fronteiras do samba, incluindo a todos e ocupando o mercado musical do topo aos nichos. O debate ficou quente naquele ano. Um show de réveillon na Praia de Copacabana em homenagem a Tom Jobim (falecido em 1994) coloca Paulinho lado a lado com grandes nomes da MPB: Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. Em janeiro, a divulgação de que Paulinho recebeu um terço do cachê dos outros artistas reacende a polêmica sobre samba e mercado, valor artístico e monetário.

Bebadosamba, lançado no final de 1996, é uma síntese de todo esse movimento complexo e instigante, no qual o principal artista do samba apresenta sua posição estética e política no debate. Bebadosamba não é somente um disco, é o sugestivo nome da faixa-título, é um show, um projeto estético amplo, além de um CD duplo (Bebadachama, lançado em 1997). Todo o projeto é uma espécie de editorial no qual Paulinho reivindica a força da tradição do samba, sem saudosismos, mas com reverência ao processo histórico, à formação de uma herança e de um repertório de clássicos.

A música-título concentra todos esses elementos. Começa com o timbre hoje raro do “prato e faca”, instrumento constantemente referenciado como de forte presença nos primórdios das rodas de samba no início do século XX. E segue com entradas do pandeiro, tamborim, agogô, chocalho, quatro compassos para cada um, que preparam a entrada da voz de Paulinho recitando um poema hermético, que fala em chulas, choros, sambas. O primeiro instrumento melódico a ser ouvido é o violão, que “chama” o restante dos instrumentos com uma singela frase descendente. A música se enche para cair direto no refrão: cavaquinho, piano, coro. “Beba do samba, bêbado samba”! O jogo de palavras é propositadamente ambíguo. Ao mesmo tempo em que denuncia o estado de embriaguez desse personagem-samba, o imperativo sugere que se beba dele, fonte e resultado de uma consciência alterada. Possivelmente o trecho mais expressivo dessa música é o “chamamento” recitado no meio da gravação. São 38 sambistas falecidos que são convocados para participar da roda, do samba. É o momento-chave da música (e do disco, e do show), no qual se estabelece uma relação de presentificação do passado, uma valorização da herança, da fonte (alcoólica? Seria o éter do “Olimpo do samba”?) que ressoa na prática contemporânea do samba. A embriaguez dos sentidos cantada por Paulinho em 1978 em “Apoteose ao samba”, belo samba de Mano Décio e Silas de Oliveira (ambos citados no chamamento), retorna no contexto da década de 1990 para evocar a permanência do samba como uma música fundamental na construção da nação, da estética musical do século XX.

Bebadosamba não é uma resposta ao nefasto episódio do réveillon, como muitos imaginaram, mas uma reflexão sobre as fronteiras do gênero e sua importância na cultura nacional. E uma ode à tradição. De certa forma, é possível pensar numa relação de oposição entre O samba não tem fronteiras e Bebadosamba. O SPC buscava apresentar uma diversificação de origens possíveis para o samba, não restrito à grande tradição das escolas de samba cariocas. Paulinho, por sua vez, reforçava essa genealogia, ecoando o que Nei Lopes e Zé Luiz apresentaram três anos antes na emblemática Número baixo, gravada pelo Fundo de Quintal: “A verdade nua e crua” é “que você veio depois de nós, muuuito depois”.

Ao mesmo tempo, a tradição evocada por Paulinho não é estática. Ele mesmo grava nesse disco uma música inédita que rapidamente ocupou o ambiente de todas as rodas de samba: “Timoneiro”. Parceria com Hermínio Bello de Carvalho, a letra reafirma as vantagens da deriva. O mar, metáfora constante na obra de Paulinho, se materializa nas mãos do timoneiro ou na exaltação do “Mar grande”, de “Novos rumos”, outras faixas. Na corda bamba (bêbado?) entre a tradição a ser respeitada e a produção de novos caminhos, Bebadosamba funciona como uma alegoria da década de 1990, das tensões em torno do samba e da cultura nacional.

Para colocar mais lenha nessa fogueira, o disco apresenta ainda uma apologia do amor bem-sucedido – temática preferencial do pagode romântico. Parceria de Paulinho com Elton Medeiros, o samba “Ame” questiona a tendência quase obsessiva do samba pela desilusão amorosa: “Por que se negar? Por que não se dar? Por quê?” E arremata: “Ame, seja como for, sem medo de sofrer”. Não há como não associar a receita de amor feliz com o enorme sucesso sertanejo de cinco anos antes – “É o amor”, de Zezé Di Camargo -, gravado em ritmo de samba pelo Raça Negra em 1992. Na canção de Elton e Paulinho, os sambistas parecem concordar com Zezé e apresentar uma saída para a síndrome de pessimismo que marca o repertório tradicional do samba. Em Bebadosamba, as duas visões estão contempladas e marcam essa abertura temática. Sinal dos tempos. Logo após apresentar a tese de que “a vida não é uma equação” e por isso “não tem solução” (verso da canção “Solução de vida”, de Paulinho e Ferreira Gullar), no verso final de “Peregrino”, Noca da Portela sugere que “todo samba no fundo é um canto de amor”.

Capa de Bebadosamba

Ainda daria para falar muito mais sobre Bebadosamba. Pedindo perdão antecipadamente pelo excesso de adjetivos, são 14 músicas primorosas, com excelentes arranjos de Paulinho e Cristóvão Bastos, instrumentistas altamente técnicos e engajados na prática do samba, projeto gráfico belíssimo de Elifas Andreato e todo um aparato de produção sofisticado e artisticamente brilhante.

Porém (“ai, porém!”), para terminar esse texto de modo minimamente sóbrio, penso que o fundamental do disco e de todo o projeto é a valorização de certa visão de tradição não museológica, que funciona como repertório cultural e afetivo, que se atualiza em rodas, discos, shows e filmes. O tempo é a temática principal do disco, sem “saudades do passado, remorsos ou mágoas menores”. Em 2003, o chamamento de Bebadosamba abre o documentário Meu tempo é hoje, de Izabel Jaguaribe, sobre Paulinho. O título do filme é o mesmo de um disco do cantor lançado já há quase dez anos. Um disco de regravações, de revisitas, de “memórias futuras”.

Não sei mais se Bebadosamba é o melhor disco de Paulinho. Talvez eu esteja com saudades de um lançamento inédito de um artista referencial, atemporal. O samba hoje está em todos os lugares, em todos os nichos de mercado. Do sucesso massivo de Sorriso Maroto e Revelação à perenidade comercial de Zeca Pagodinho, passando pela referencialidade de Monarco e Nelson Sargento, a herança sanguínea de Diogo Nogueira, a renovação de Teresa Cristina, Casuarina e Roberta Sá. O samba está em todo lugar, nas trilhas das telenovelas, nas salas de espetáculos, nas rodas da Lapa, do Centro e do subúrbio. O samba semeia a luz de sua chama, cada vez mais forte e viva. É, estou com saudades de um futuro disco do Paulinho!

* Felipe Trotta é músico, pesquisador do CNPq e da Faperj e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. É mestre em musicologia pela Uni-Rio, com a dissertação “Paulinho da Viola e o mundo do samba” (2001) e doutor em comunicação com tese sobre o pagode dos anos 1990 (UFRJ, 2006). É autor dos livros O samba e suas fronteiras (Ed.UFRJ, 2011) e Operação Forrock (Ed.Massangana, 2010).

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