Como toda pessoa moderadamente obcecada pela vida de Ian Curtis, o líder da banda Joy Division que cometeu suicídio aos 23 anos após ter lançado dois discos que mudaram para sempre o rumo da música popular ocidental, tenho o hábito de rever o filme Control de tempos em tempos.
Minha relação com o filme de Anton Corbijn é no mínimo ambivalente. Sei que Control está longe de ser uma grande obra cinematográfica, e que o filme me cativa em especial por ser a mais detalhada representação ficcional da vida de Ian Curtis disponível – o músico já tinha aparecido em 24 Hour Party People, do britânico Michael Winterbottom, mas sua morte acontece na metade do filme. Tenho inclusive dúvidas se considero a performance de Sam Riley em Control melhor que a de Sean Harris em 24 Hour Party People (clique aqui para assistir a um bom vídeo comparativo). Estou ciente, também, de que a biopic não é a representação mais fiel da vida de Curtis, mas levo isso numa boa. Penso que filmes, ainda que de teor biográfico, sempre oferecem interpretações e recortes. Se quero uma visão distanciada da carreira do Joy Division e da cena musical de Manchester, assisto ao documentário Joy Division, de Grant Gee.
E, no entanto, é ao filme Control que sempre retorno. É ele que me emociona, pois apesar de centrar a ação na figura de Ian Curtis, e não na cena efervescente de Manchester, acaba não oferecendo nenhuma solução para o “enigma Curtis”. Por que diabos Ian Curtis se matou? A epilepsia? Uma depressão não diagnosticada nem tratada? O drama familiar de ter se casado muito cedo e não conseguir lidar com o fato de que se apaixonou por outra mulher? Uma soma de todos esses fatores?
Todas as vezes que assisti ao filme de Corbijn, saía da experiência compreendendo menos ainda a figura de Ian Curtis. Apesar de a obra dar uma atenção especial aos problemas amorosos do músico, sempre me pareceu um tanto absurdo alguém se matar porque a mulher com quem se casou na adolescência quer o divórcio. O ano era de 1980, não 1950.
Sim, há algo de ingênuo e até mesmo estúpido em tentar buscar uma explicação em uma obra de ficção. No entanto, o impulso é inevitável. Os fãs de Joy Division – eu incluso – sempre procuraram razões para o suicídio nas letras, além de indícios proféticos (e o disco Closer é um prato cheio para isso – começando pelo título). No entanto, com o acúmulo de novas informações sobre Curtis (o livro escrito pela viúva, o volume da série 33 e 1/3 sobre o Uknown pleasures, os filmes já citados), fui tentando encaixar peças de quebra-cabeça contraditórias e quiçá enganosas.
Semana passada, revendo Control, percebi algo que não tinha notado até então. O filme propõe, sim, uma interpretação para o suicídio. Está nas imagens, ou melhor, na edição. Está na representação de um varal de teto para estender roupas.
O varal aparece em três momentos: logo que Ian Curtis casa com Deborah e se muda para a nova residência. Lá está o varal representando a vida conjugal, uma vida familiar que nenhum outro membro da banda tinha (todos os outros estavam mais preocupados em transar com o maior número de groupies possível).
Foto de casamento do verdadeiro Ian Curtis.
O varal reaparece em seguida, quando nasce a filha de Ian Curtis. Desta vez, as roupas estendidas no varal são as fraldas. Mais um peso em sua vida – agora Ian Curtis é forçado a assumir o papel de pai de família, papel que contrasta radicalmente com a de rockstar que começava a ser exigido dele, com o sucesso que fazia o Joy Division. A separação entre a vida regrada de um epilético casado e as performances desregradas no palco vai aumentando até se tornar insustentável. As decisões que tomou no passado (casar, ter filhos) não podem ser ignoradas ou descartadas. Não para uma pessoa com o mínimo senso moral, ao menos. “The past is now part of my future/ The present is well out of hand”. E Ian Curtis era um sujeito de consciência pesada. Todas suas ações o atormentavam, e a cada novo equívoco que cometia, o desespero aumentava, atingindo todas as partes de sua vida. O resultado? A terceira aparição do varal no filme. É neste ícone de vida conjugal e familiar que Ian Curtis se enforca.
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Uma pequena digressão que juro que fará sentido: li, no início do ano, A trama do casamento, de Jeffrey Eugenides. Não gostei muito do livro (os motivos não interessam), mas foi um romance que me emocionou profundamente em um trecho. O trecho é aquele em que o narrador de Eugenides descreve a relação do personagem Leonard Bankhead com o transtorno bipolar – o avanço da doença, a tentativa de se medicar etc. Apesar de Eugenides ter negado em entrevistas, Bankhead tem dezenas de semelhanças com David Foster Wallace, o autor americano de Breves entrevistas com homens hediondos que cometeu suicídio em 2008 e era amigo pessoal de Eugenides.
As semelhanças não dizem apenas respeito às opiniões, mas também à descrição física. Bankhead chega até a usar bandana, um símbolo sempre associado a Wallace. O destino do personagem de A trama do casamento não fica claro, até mesmo porque a trama se passa nos anos 80 e não vai até os dias de hoje. Porém, lendo o livro de Eugenides com a imagem de David Foster Wallace na cabeça, foi difícil não me emocionar com a descrição dos tormentos mentais pelos quais Bankhead passa. Eu constantemente pensava que sim, apesar do que o autor afirmou na vida real, aquele era Foster Wallace, e ele, como Ian Curtis, iria se enforcar no final da estrada. O desfecho trágico está escrito na vida real. Sim, A trama do casamento é uma obra de ficção, mas uma obra de ficção que para mim acabou gerando o “efeito Control“: comecei a procurar na narração da vida de Bankhead uma explicação para o suicídio de Foster Wallace. Loucura minha? Muito possivelmente. Mas, se o livro de Eugenides me empolgou em algum momento, foi por se apoiar nesse referencial.
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Nunca vou saber os motivos que levaram Ian Curtis ao suicídio. Nem se eu fosse amigo dele. Nenhum integrante da banda imaginava que ele ia fazer isso, nem mesmo após a primeira tentativa (com pílulas). Deborah Curtis não imaginava que, ao retornar à sua casa e ver a luz acesa, encontraria o cadáver pendurado de Ian na área de serviço. É isso que torna as narrativas de suicídio tão interessantes, e é por isso que retorno com frequência ao filme Control: o final é igualmente horrendo e inevitável, e nunca deixará de ser um mistério insondável para todos nós.
* Antônio Xerxenesky é redator do site do IMS.
* Na imagem que ilustra o post: cena do filme Control, de Anton Corbijn.