Pássaro bonbon

Correspondência

03.04.13

Leia a carta anterior.                                                                                                                   Leia a próxima carta.

 

São Paulo, 3 de abril de 2013

Chac,

E aquela vez que nos encontramos em Fortaleza? Eu estava com uma flor extinta colada no olho esquerdo, fingindo ser militante da flora injustiçada, e você tomava uma caipirinha usando o corpo da Bic como canudo. Enquanto o limão bagunçava sua faringe, laringe e traqueia você discursou bastante acerca do caminhar dos pássaros pernetas para uma turma de surfistas. Foi um dia muito agradável, conversamos de costas um pro outro toda a tarde, fato que legitimou nossa amizade. Depois saímos ajoelhados pela orla, repetindo a coreografia de uma maré batendo na primeira linha de areia seca. Que momento! Muito importante para nós, principalmente porque jamais nos lembraremos dele, visto que ele nunca aconteceu. Aconteceu?

Há o que não importa tanto e o que importa muito. Fato triste é que nos vemos pouco. E o feliz é que nossos poemas estão sempre conversando por aí. Uma hora tomando café dentro de uma antologia, noutra pegando sol numa revista alternativa. Já até marcharam juntos, feito esse dia da invasão do Arpex. O que será que a sua placa cochichou pra minha? Será que o soldado que a carregava ouviu a conversa? Melhor mesmo é que você entrou na minha onda, pois é assim que vejo o mar e foi o jeito que encontrei de iconografá-lo no coração, porque suprimi-lo é impossível. Só quem já tentou guardar o mar entenderia. Depois disso mandei fazer em formato carimbo, o chaveiro da Fradique Coutinho quando me vê já faz cara de “Ih, lá vem!”.

Ultimamente tem acontecido muito isso de não ser reconhecida. Deve ser a peruca que cresceu. Mas pode ser também o tempo me redesenhando, ajeitando as esquinas e frondejando a árvore. Você diz que viu beleza, obrigada, a beleza pra mim é uma luz que acende e apaga todos os dias, e a luz é nada mais do que, novamente, uma onda. No entanto, não marco nem trinta no RG, mas já me deram trinta e nove. Minha mãe diz que são os óculos, que o “jovem” leva muito a sério o retrô. Quando saio sem eles ninguém me cumprimenta, tenho que fazer como fiz com você, me apresentar pros meus próprios amigos. É desconfortável, curioso e legal ao mesmo tempo.

De resto, passei a Páscoa inteira pensando bobagem, comparando a vida a um bombom. Não fui muito feliz, mas me esforcei a cada desenrolada de papel. Partilho este tarô pessoal: no de chocolate preto vi a vida amarronzada por fora, turva, enodoada. Mas quando mordi vi que poderia ser gostosa por dentro, e ter côco, amendoim, laranja. Com o de licor imaginei a vida caudalosa em seus segredos, e mesmo hesitando em mordê-la por desconhecer seu sabor, ganhei uma cachaça surpresa. Depois com o crocante me vi num empreendimento, mastigando pedras e administrando os caroços para proteger os molares. Saldo: salvei um canino. Um bom saldo.

Expus também alguns bombons a um sol indireto e azedo do Rio de Janeiro e vi todos eles se amolengarem, virarem água e evaporarem. Deixaram uma mancha engordurada no batente da janela, facilmente confundida com cocô de passarinho. Depois coloquei alguns no congelador e deixei trincarem no gelo extremo por quatro horas. O resultado: pedra boa pra estilingue. Jogar dentro de um copo com Amarula era a segunda alternativa, leite em pedra misturado ao leite líquido alcoolizado: isto deveria contrariar a máxima de que quem não guenta bebe leite.

Ao final deste episódio Meu Pequeno Cientista levei uma caixa de chocolate ao forno, cada bombom um momento, e deixei pasteurizar. O que aconteceu depois não é muito interessante, você deve imaginar. Mas se quiser tentar eu encorajo, menos pela experiência e mais pelo resultado. Por pouco esta carta terminaria em parábola, mas é mais fácil escrever um relato de viagem. Então vou colar um poema que eu escrevi pra você em 2007 e publiquei sem dedicar. Gosto dessas traquinagens. Eu queria era que ele tivesse aquele barulhinho que ouvimos ao abrir uma bebida em lata, quase anexei um arquivo midi. Tomara que você ouça!

//

Dirigível do amor

mandei
on monday
morning

alice morder
as hélices
do meu teco-teco

ela sorriu estilhaçada
de frio e vento
batendo na cara

mas preferiu aterrissar girando a saia
mostrando a calcinha
pros passantes.

//

Do terminal rodoviário do Tietê,

Bruna.

P.s: Vou te mandar um exemplar novo d’a fila sem fim!