Proust, Mario Bros e o Sr. Gallimard

Correspondência

16.02.11

Fala, bicho,

Excelente o fim de semana, hein? Pena que não deu para virar o Super Mario Galaxy 2. Todavia, considero dez horas de jogo e cerca de vinte e cinco estrelas conquistadas um feito e tanto, ainda mais por termos passado daquela fase nauseabunda, que custou duas horas do domingo. E engraçado que você tenha falado de memória. Passei duas horas assistindo o seu ser vital se desmanchar em frente à tevê. Fracasso após fracasso, humilhação após humilhação, você seguia tentando marcar os impossíveis seiscentos pontos em quarenta segundos, que o macaco de chapéu no início da fase exigia.

Depois de cerca de uma hora e meia de jogo, quando todos os traços de raiva tinham se dissipado, quando não havia mais alma para ser esmagada pelo peso da derrota, você começou a jogar no automático, apelando a um tipo de memória que, me parece, está reservada apenas a jogadores de videogame e malabaristas de semáforo. O que antes era uma tentativa racional de estourar os balões no limite de tempo ? tarefa tornada impossível pelo algoritmo satânico, que limitava sua pontuação a um máximo de 590 pontos ? tornou-se um caminho de rato, tão automático e natural quanto respirar ou causar sofrimento.

Não estou querendo desmerecer, pelo contrário. Se eu tivesse passado daquela fase, consideraria um dos grandes feitos de minha vida, sem ironia ou falsidade, e sei que você também pensa assim. Na última rodada, nem parecia um jogo. Era só andar exatamente por aquele caminho, exatamente naquele ritmo, sem esbarrar em absolutamente nada, como se fosse uma gravação. De fora, pareceu fácil demais, como se as dezenas de tentativas anteriores tivessem naufragado por culpa sua, e não pela maldade do programador japonês. Ainda assim, você vai guardar muito mais a memória das 199 derrotas do que a da vitória, é claro.

Gosto demais dessa teoria sobre a memória, de que o subconsciente trabalha sempre para enterrar as lembranças felizes e para fazer aflorar só miséria e ruína. Por isso um trauma não pode ser superado por um acontecimento feliz, por exemplo, e apenas quando ruminamos sobre o próprio trauma. É uma maneira bastante sofisticada, do ponto de vista evolutivo, de tornar a existência moderadamente tolerável. Juro que não estou fazendo drama ou tipo, inclusive nem acho que seja uma teoria pessimista. O fato de que vamos perdendo as coisas boas dia após dia torna tudo mais interessante.

Tenho aqui em casa um livro de cartas entre o Proust e o editor dele. Claro que não li tudo, tem umas oitocentas páginas, e eu não li nem o Proust ainda, então oquei. Mas de vez em quando dou uma folheada, tem uns momentos bastante ilustrativos de tensão editor-autor que eu aprecio muito. Minha parte favorita é quando eles começam a examinar as provas de prelo, depois da entrega do primeiro manuscrito. Conforme ia corrigindo pastéis e ajustando o texto pronto, o autor ia inserindo novos trechos na margem, para serem incorporados em uma nova prova de prelo.

Se até hoje não é recomendável adicionar trechos longos em um texto que já está em prova, só posso imaginar o que sofreram os tipógrafos da época, remontando o livro na unha versão após versão. E sempre que se insere texto, brotam erros, o que exige nova revisão e nova leitura pelo autor. Que mais uma vez espremia trechos longuíssimos nas margens, dando início a outro ciclo de desespero do Sr. Gallimard. Eles eram amigos e tudo, e na verdade ele era um editor (muito) tolerante. Mas chega um determinado momento que ele implora ao Proust que entregue o livro finalizado (acho que é o terceiro volume, o segundo que o Gallimard editou).

A resposta é muito matadora. Procurei aqui e não achei, alguma hora te mando. Mas o Proust faz uma longa defesa do método, argumentando que o cerne daquela história é a memória involuntária. Essa seria uma memória vertical, onde todos os acontecimentos coexistem fora da cronologia que improvisamos para nossas lembranças. De modo que, ao tentar reproduzir essa memória, era impossível que ele, o autor, barrasse a entrada de novas lembranças que, por sua vez, estavam sendo puxadas pelo próprio livro. Minha primeira reação é sofrer muito, em solidariedade ao editor. Mas acho bacana essa idéia de memória vertical, e aparece de um jeito ou de outro em uma porção de livros que eu gosto.

Olha só, não vou para o lançamento do Sica hoje. Estou um pouco corrido na editora, teria de sair no fim da tarde e voltar amanhã bem cedo, e o lançamento em São Paulo já é na sexta. Mas em março apareço aí, acumulei umas milhas e dá para passar um fim de semana sem ter que se preocupar com trabalho. Levarei Super Mario Galaxy 2, obviamente. Gosto da idéia de pegar táxi, fila, avião, fila e táxi para me enfurnar no seu apartamento e jogar videogame. Todavia, estou com saudades de todos aí e será massa comer churrasco na Portoalegrense, seguir até o Parangolé (onde todos discutirão mais uma vez se a garçonete se parece ou não com a Milla Jovovich) e depois terminar no Cabaret, fazendo air guitar com nossa amiga Bruna.

Em nota relacionada, gostei do som na festa de sexta, muito embora não tenha ouvido você tocar Rudimentary Peni conforme havia prometido. Mas entendo, não era o público adequado, e imagino que a sensação de se esvaziar uma pista às duas da manhã não deva ser boa. Ainda assim, pena que a gente se desencontrou. Acabei ficando na varanda, onde o tabagismo era liberado, e depois me arrastei até um táxi. Minha última lembrança é o Rafa passando de braços para cima, tentando roubar um brigadeiro da bandeja daquela moça vestida de Mulher-Maravilha.

O que contradiz um pouco a teoria das memórias miseráveis, mas enfim.

Abraço,

André.

, , ,