Elogio do penetra

serrote

14.02.11

Na próxima serrote, que chega às livrarias na segunda quinzena de março, publico um ensaio pessoal curiosíssimo: “Sobre ser filho único”. Seu autor é Geoff Dyer, inglês que é conhecido no Brasil por dois caminhos: a não-ficção (O instante contínuo e Ioga para quem não está nem aí ) e o romance (Jeff em Veneza, morte em Varanasi). O texto é impiedoso ao revisar suas relações com pai e mãe e, sem psicanálise de botequim, busca na condição de filho único a origem de pontos de sua personalidade. É aquele ponto ideal entre o umbigo, puro e simples, e a mão estendida para o leitor.

Mas o que me interessa em Dyer é sobretudo a liberdade de escrever, sempre com inteligência, sobre o que lhe dá na telha e da forma que lhe apetece.  Se ele é genial em fotografia e jazz, viagem e literatura? Claro que não. Mas há muitos e importantes acertos em seus variados escritos que tem como único objetivo pensar e fazer pensar. Dyer é, em sua própria definição, um penetra intelectual.

“Minha vida de penetra intelectual e acadêmico é entrar, sem ser convidado, em uma área de expertise, me pondo à vontade, vivendo momentos muito bons por um ano ou dois e depois indo para um outro lugar qualquer”, escreve ele em “Minha vida de penetra” (publicado, assim como “Sobre ser filho único”, no recente Working the room).

O penetra é figura que faz falta em nossos arraiais intelectuais. É uma vida que, lá como cá, não é mole. Mas basta ler jornais e revistas e comparar livrarias virtuais para constatar que eles, os que entram na festa sem convite, são mais numerosos e atuantes alhures. O que diz muito da paroquialização de nossas discussões.

O penetra é, em si, uma contestação radical da política de territórios que rege a nossa chamada vida intelectual. O Tratado de Tordesilhas que a define estabelece desde grandes latifúndios – ficção e não-ficção são dois deles- até pequenas capitanias – o especialista na página 58 da segunda edição não-revisada de Casa Grande e Senzala, por exemplo. O importante é que para atravessar uns e outros ou instalar-se no canto que mais lhe apraz é preciso autorização.

Já é História o pau firme que Chico Buarque e Jô Soares levaram de Wilson Martins quando publicaram seus primeiros livros. O velho crítico legislador, que até morrer discutia a validade do modernismo ou travava bizantinos debates sobre a poesia concreta e sua influência, tinha muito claro que um compositor e um ator não poderiam escrever ficção, não estavam autorizados a fazê-lo por pertencerem a outros domínios da cultura.  Ainda que de forma caricatural, Martins vocalizava uma opinião corrente e que, na maioria das vezes, se manifesta de forma bem mais discreta. Chico e Jô eram (e para alguns ainda são) penetras.

O penetra não tem nada a ver com o oportunista ou o diluidor puro e simples. Quando age de caso pensado, não quer com isso um lugar ao sol e ponto. O que quer, isso sim,  é ser fiel à sua paixão intelectual, que para se consumar não deve precisar de regras ou formatos. O que também o distingue é os bons modos com a língua, buscando sempre clareza, graça e humor geralmente estranhos à prosa dos especialistas. O penetra, é bom que se diga, não quer jamais o lugar do dono da festa.

A vida de penetra é a vida do ensaísmo tal como é mais interessante, ou seja, aquele que não conquista autoridade pelo número de notas de rodapé (um arame farpado em volta do texto, como dizia Edmund Wilson) ou pelo name dropping, mas pelo prazer do raciocínio. Ser, como diz Dyer, “Professor Alguma Coisa de Qualquer Coisa na Universidade de Não Sei Onde” pode ser confortável. Mas ser penetra é muito mais divertido.

, , , ,