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Ó Rei dos Pinhões,
Que fazeis na aprazível Gonçalves, em que jamais pisei sequer em sonhos, nunca vi mais gorda, magra ou friorenta, mas que, agora informado, sei localizar-se no sul das Gerais, nas dobras da Mantiqueira, a 300 quilômetros da Vila de Piratininga? Decerto não fostes aí para ser atropelado.
Em que brahmas, em que brumas meteu-se o nosso Rei? A Glória está dando para todo mundo, que história é essa? Quem é esse enxerido Corbières? Sem internet? No duro? Há alguma cousa de mistério e suspense nesse vosso mergulho queirosiano, digno de “A cidade e as serras”, alegoria irônica, e atualíssima, sobre o culto do progresso e das novidades da ciência e da tecnologia.
Sacis, curupiras e mulas-sem-cabeça? Parece exagero, sô. Tais criaturas ficaram em San Pablo, que não iam perder os protestos que ora monopolizam as atenções do mundo para o gigante rincão varonil e auriverde.
Falai a verdade. Não estais escondido para dar uns tapas (sem duplo sentido, por favor) no novo romance? Sei que gostais de recolhimento na hora de pentear (com duplo sentido, por favor) um texto antes de dá-lo e dedá-lo a público. Então é verdade? Teremos em breve, nas boas casas do ramo, exposto e sarado, um Reinaldo Moraes enfeixado em folhas? Acaso pergunto, é porque você – basta de segundas pessoas do plural! – não imagina quanta gente me pediu para apurar se há bagaça ou não há bagaça à vista. Lembra da queridíssima e doce Renata Megale? Pois ela insistiu que fizesse o papel do repórter que um dia eu fui e assuntasse. Assuntado está.
Atendido o apelo das massas, passo a questões mais comezinhas. Os protestos. Os quebra-quebras. Assim que ligo a TV e dou com aquelas imagens espetaculares, não faço por menos. Lembro logo o “bogotazo”. Você conhece a história: o fuzuê dos diabos se deu no dia 9 de abril de 1948 e deixou Bogotá ardendo em chamas. Nessa data Jorge Eliécer Gaitán, o líder político mais popular da Colômbia, candidato dissidente do Partido Liberal e que fatalmente teria sido eleito presidente nas eleições daquele ano, foi abatido a tiros em pleno dia numa das ruas centrais da capital, nas mãos de um fanático chamado Poa. Segundo notou Antonio Callado, Gaitán tinha “a cara pálida de índio”.
Na ocasião havia um grupo de jornalistas brasileiros em Bogotá, entre os quais Callado, do Correio da Manhã, e Joel Silveira, do Diário de Notícias, cobrindo uma conferência pan-americana, que deu origem à OEA. A fúria popular começou ao meio-dia. Não se sabe como os revoltosos, em luta de machetes e fuzis pelas esquinas, conseguiam distinguir os “godos” (conservadores) dos “liberales”. Trucidaram-se, dias seguidos. “Pueblo, a la carga!”, o grito de guerra. Fidel Castro e Gabriel García Márquez, ambos na época estudantes (não os amantes que se tornariam depois), andavam por lá e fizeram relatos impressionantes do que presenciaram.
Da sacada do Hotel Regina, Callado viu os desordeiros, cheios de pisco na ideia, chegarem com latas de gasolina. Se mandou, carregando a máquina de escrever Hermes, e ainda a tempo de levar a chave do quarto, “pieza 5”, que conservou como recordação do horror. O Regina, segundo ele, no dia seguinte virou “um arcabouço carbonizado”.
Usando uma bandeira brasileira como cobertura, o grupo de jornalistas conseguiu chegar à nossa embaixada. E é nesse trecho que eu queria, também, chegar. Estava em Bogotá o diplomata João Guimarães Rosa, o Joãozito, assim conhecido mesmo tendo publicado, dois anos antes, em 1946, os contos de Sagarana. Bom repórter, Antonio Callado não perdeu a chance de perguntar a Guimarães Rosa se ele havia acompanhado o levante nas ruas. “Ora, Callado, o que eu tenho de escrever está tudo na minha cabeça. Não preciso ver coisa alguma… Já fiz um livro e estou fazendo outros”, respondeu o escritor mineiro. Inconformado, Callado insistiu: “Mas o que você fez enquanto Bogotá pegava fogo?” “Reli Proust”, disse Rosa, na lata.
Ando, aqui e ali, enquanto o pau come Brasil afora, relendo um autor de minha predileção. Tem a ver com trabalho, meu caro Reinaldo, pois de um dia para outro me descobriram “especialista” em Rubem Braga, ai de nós! De encomenda, escrevo artigos e apresentações de livro, compareço a bate-papos em bibliotecas e centro culturais. Outro dia, dei uma entrevista para a televisão, na murada do Forte de Copacabana. Morri de sede, estava de ressaca. Mas não reclamo, há maneiras piores de ganhar a vida. Vendedor daquelas máscaras do filme V de vingança, por exemplo.
Em minha recente condição de scholar, permito-me bolar umas tesezinhas, cuja eficácia gostaria de testar com você, antes de apresentá-las ao distinto público. Avisa se achar o papo furado demais, para que eu não passe vergonha.
A principal sacada é a seguinte: Rubem Braga nunca conseguiu desligar-se de Cachoeiro de Itapemirim, onde nasceu, mesmo tendo vivido em capitais sofisticadas como Rio e Paris dos anos 1950. Negócio dele era achar o mato dentro da cidade grande.
Não é de estranhar, portanto, que se encantasse com o que julgava ser um pé de milho que nasceu no quintal do seu apartamento em Copacabana, o mesmo em que morou na companhia de Paulo Mendes Campos, outro cronista da pesada, tão ou mais brilhante que o companheiro de sala e cozinha. Os amigos desmentiam o Braga: aquilo era simples capim, no máximo um pé de cana (com duplo sentido, a turma era chegada num uísque nas pedras). Mas ele insistiu e viu crescer o pé de milho, alcançando dois metros e lançando suas folhas além do muro. “E eu não sou mais um medíocre homem que vive atrás de uma chata máquina de escrever: sou um rico lavrador da Rua Júlio de Castilhos”, conclui o Sabiá na crônica “Um pé de milho”, título do livro lançado em 1948 (mesmo ano do “bogotazo”, veja as coincidências que nada querem dizer).
Para não nos alongarmos mais nesse tipo de comparação, que abunda na obra do Braga, vale lembrar só o título de mais uma de suas seletas de crônica: A cidade e a roça, publicada em 1957, que depois o autor mudaria para O verão e as mulheres (sem dúvida, melhor) por considerar que lembrava demais o do romance A cidade e as serras, de Eça de Queiroz (citado pela segunda vez nesta epístola, um recorde). Note-se: não havia no livro texto chamado “A cidade e a roça”. Na maioria deles, porém, a temática é inequívoca: “O outro Brasil”, “O homem dos burros”, “Caçada de paca”, “Buchada de carneiro”, “O lavrador”.
Velho Braga. Gostava de ser tratado dessa maneira. Com algum exagero, amigos mais chegados – como o jornalista Otto Lara Resende e o poeta Vinicius de Moraes – garantiam que ele era velho, solitário, casmurro, carrancudo, resmungão, e que tinha aquelas grossas sobrancelhas e os bigodes em forma de trapézio desde menino de calças curtas.
Para Manuel Bandeira, quando Rubem Braga tinha assunto, era sempre bom; mas quando não tinha, era ótimo. Seu domínio do ponto e vírgula era assombroso. Poucos usaram o difícil recurso da língua escrita melhor do que ele. O ponto e vírgula parece ter sido inventado para o gasto do Braga e o prazer de seus leitores.
Ateu e anticlerical. No início da década de 1930 o pensador católico Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, propôs a adoção do voto feminino, cuja restrição só foi oficializada, definitivamente, no Código Eleitoral Brasileiro de 1932. Qual não foi a surpresa quando o Braga se mostrou contra. Sua argumentação era que, do púlpito, os padres e a Igreja iriam manipular as mulheres, fazendo com que votassem em candidatos apoiados “pelo maquiavélico e sedutor cardeal Sebastião Leme e pelo próprio doutor Alceu”.
Deve ter sido a única vez na vida que se comportou de maneira hostil com mulheres. Foi um homem de muitas paixões. O casamento com Zora Seljan é o único em sua biografia. Conheceu Tônia Carrero no esplendor na beleza, e iniciaram um caso em Paris (você conheceu alguma Tônia Carrero em seus tempos de Paris, Reinaldo?). Com Danuza Leão teve um envolvimento platônico. Com Bluma Wainer (por coincidência, como Danuza, mulher de Samuel Wainer, e aí começo a achar que as coincidências querem dizer alguma coisa), o lance foi bem mais sério. Para viver com ele, ela chegou a se separar do marido, engravidou, e o namorado, que no fundo não queria uma ligação definitiva, fugiu para Porto Alegre. Bluma decidiu abortar. Depois da sua morte, Rubem encomendou a Alfredo Ceschiatti uma escultura dela, que plantou no jardim da cobertura de Ipanema.
Bonito, não acha? O que me leva a outra escultura, de carne, osso e formosura, e permite continuar nosso momento varandão da saudade em torno das musas dos anos 1970/80. Estive uma única vez frente a frente com Adele Fátima, imortalizada não só no comercial das Sardinhas 88 como também em algumas pornochanchadas clássicas e no suingue Adelita (Ela é magnética), de Jorge Benjor: “Quando ela passa por aqui/ e me olha com esse olhar inocente/ puro, adocicado e primaveril/ Eu me sinto deslocado que passo/ da idade do lobo pra idade pueril”.
Magnética! Fui ter com a mulata – uma das mulheres mais gostosas do planeta! – em minha humilde condição de repórter. Não lembro a pauta. Coisa de numerologia, ela decidira assinar Adelle de Fattimma, ou algo parecido. Cheguei cedo, e o porteiro do prédio onde ela morava no Jardim Botânico me pediu para aguardar um minuto. Eis que surge uma moça gordinha, de largas camisetas brancas e jeans, suada e carregando sacolas de supermercado. Me sorriu, eu disse: “Prazer, estou aguardando a Adele…”. Ela: “Mas sou eu mesma, meu anjo, não está me reconhecendo?!”.
Não sabia onde enfiar a cara. É que, como dizia o Rubem Braga, “ultimamente têm passado muitos anos”. Mas depois o papo com Adele foi ótimo, ela fez o maridão servir croquetes de carne, risoles de camarão e cervejinha gelada, o cara só faltava usar avental…
Com tal papelão, despeço-me, na esperança de que os pinhões de Gonçalves lhe sejam breves ao estômago e ao espírito,
Do teu amigo atrapalhado,
Marecha
PS: A gíria “peixão” está abonada na prosa dos maiores estilistas da língua portuguesa. Em A brasileira de Prazins, de Camilo Castelo Branco, conta-se a história de amor de Marta de Prazins (a tal brasileira, alcunhada dessa torpe maneira porque está prometida pelo pai a um tio que fez fortuna em Pernambuco). Logo nas primeiras páginas, tasca Camilo: “Os outros estudantes, rapazolas vermelhaços, refeitos, grandes parvajolas, com grandes nacos de boroa nas algibeiras das véstias de saragoça de varas, e os velhos Virgílios ensebados em saquitos de estopa suja, diziam graçolas a Marta – chamavam-lhe boa pequena, franga e peixão”. Tem ritmo o portuga, não? E safadeza na cabeça: “saragoça de varas” é forte.
PS 2: Projeto Bambolês Simultâneos em marcha. Pus na fita um mui respeitado empresário da noite carioca, benquisto e influente nas boates Flórida, Escandinávia, Barbarella, Kiss, Inferno da Dantas e outras menos cotadas. Estamos na fase dos testes com fitas métricas, selecionando candidatas a interpretar a crooner Missiva Levanta. Uma princesa gitana não garanto que a gente arranje, mas uma prima bamboleante de Brás de Pina, há de se conseguir. Vai dar mó pedal.