Antes de lançar Lolita, em 1955, Vladimir Nabokov deu aula de literatura no Wellesley College e na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. Quarenta anos depois, os cursos foram organizados e reunidos em dois volumes. O primeiro, Lições de literatura russa, foi lançado no Brasil no ano passado. O segundo, Lições de literatura, acaba de sair, também pela editora Três estrelas. Neste último, sete clássicos dos séculos XIX e XX são analisados: Mansfield Park, de Jane Austen; A casa soturna, de Charles Dickens; Madame Bovary, de Gustave Flaubert; O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson; No caminho de Swann, de Marcel Proust; A metamorfose, de Franz Kafka; e Ulysses, de James Joyce.
Abaixo, o IMS faz quatro perguntas a Jorio Dauster, tradutor consagrado que verteu para o português oito obras de ficção de Nabokov. Dauster comenta os gostos e desgostos de Nabokov, que acreditava que “ninguém podia ser ensinado a escrever ficção, a menos que já possua talento literário”, e definia a obra de arte como “a criação de um novo mundo”: “a primeira coisa a fazer é estudar esse novo mundo tão de perto quanto possível”.
As minuciosas descrições do espaço onde as cenas dos livros se desenrolam têm enorme importância nas aulas. Exemplo disso é, em Médico e o monstro, a preocupação em esmiuçar detalhes da fachada, do hall de entrada e dos corredores, a ponto de anexar uma planta baixa da casa de dr. Jekyll, desenhada por um aluno. Por que será que a percepção visual recebe tanta atenção no curso de Nabokov?
Nabokov não gostava de música, embora seu filho viesse a ser um cantor de ópera. No entanto, o que lhe faltava em matéria de ouvido era mais que compensado pela extraordinária percepção visual que lhe permitia descrever a cor da sombra de uma fruta. Tendo estudado desenho como criança, pensou em ser pintor de paisagens, o que lhe serviu para retratar as borboletas que estudava no Museu de Zoologia Comparada de Harvard, além das inventadas com que enfeitava cartas para sua mulher, Véra. Assim, a preocupação em registrar os cenários onde se desenrolam as ações dos livros deriva em larga medida de seu interesse em visualizar perfeitamente o que foi descrito pelo autor. Mas há outras duas razões importantes. De um lado, como no caso da descrição minuciosa da casa do dr. Jekyll, as duas entradas – uma rica e bem cuidada, a outra decrépita e quase assustadora – refletem a dupla personalidade do proprietário, que assim ganha também uma significativa representação gráfica. Algo semelhante ocorre na aula sobre Kafka, em que a disposição dos aposentos em torno do quarto de Samsa é importante no desenrolar do pesadelo que afeta os demais membros da família em A metamorfose. Por outro lado, a atenção aos “detalhes divinos” que Nabokov recomendava a seus alunos serve para reforçar sua repugnância pelos romances que contêm mensagens ou expõem teses sociais. Aliás, nessa atenção aos pormenores, Nabokov se aproxima do Joyce de Ulisses, que leva o leitor a passear pelas ruas de Dublin como se fosse um morador de longa data.
Em relação às escolhas: sendo o pai de Nabokov um grande conhecedor de Charles Dickens, por que ele selecionou um livro “menor” do autor, A casa soturna? E, em sua opinião, por que os escritores preferidos de Nabokov – Herman Melville e Nathaniel Hawthorne – não viraram temas de suas aulas?
O pai de Nabokov era um rico aristocrata liberal, advogado e jornalista, que buscava nas obras de Dickens sobretudo material a ser usado em sua campanha contra a pena de morte na Rússia czarista. Nas férias de verão que a família passava no campo, ele lia para os filhos, nas tardes de chuva, o livro Grandes esperanças em inglês – o que, como Nabokov confessou décadas depois, talvez o tivesse impedido de voltar a ler Dickens como adulto. Para as Lições de literatura, a escolha de A casa soturna e Mansfield Park correspondeu a recomendações de Edmund Wilson, que Nabokov sem dúvida acatou para lisonjear quem tanto lhe ajudava a se fazer conhecido nos mais refinados círculos literários norte-americanos. (Depois brigaram, como sói acontecer com dois ególatras, porque Wilson teve a ousadia de criticar publicamente a tradução para o inglês que Nabokov fez de Eugene Onegin, de Pushkin.) O curso na universidade de Cornell que deu origem às atuais Lições de literatura era intitulado “Ficção europeia”, não cabendo assim os norte-americanos Melville e Hawthorne.
Ao comentar o estilo de Proust, ele diz que, “em termos de generosidade verbal, ele é um verdadeiro Papai Noel”. Além do sarcasmo, quais outros elementos você diria que estão presentes tanto nas aulas quanto nos livros de Nabokov?
Nesse livro, a maior demonstração do sarcasmo de Nabokov pode ser encontrada nas observações que faz a respeito de Jane Austen no início das aulas sobre Dickens. Não senti que o humor muitas vezes cortante de Nabokov tenha sido usado contra Proust, que, juntamente com Flaubert e Joyce, foram seus autores prediletos fora da Rússia. Mas ele era implacável com escritores que considerava menores e cujo êxito, com certo grau de inveja, considerava imerecido, como foi o caso de Boris Pasternak com seu Doutor Jivago.
Em carta a Edmund Wilson, Nabokov diz que não gosta de Jane Austen e que tem “parti pris com relação a todas as escritoras”, pois elas pertenceriam a “outra classe”. Esse tom ranzinza fica claro na análise de Mansfield Park, quando o escritor considera as imagens do livro “pouco vívidas”, “bastante limitadas”. Por que você acha que ele decidiu falar sobre Austen mesmo assim? E o que, na sua opinião, justificaria esse “parti pris” com as escritoras?
Alguns dizem que essa discriminação contra as escritoras é uma característica que ele herdou da cultura literária russa, mas pessoalmente desconfio que Nabokov era mesmo um bom machista, o que transparece inclusive no tratamento cruel que dá a muitas personagens femininas de seus romances. No entanto, isso significaria levá-lo postumamente ao divã e, como Nabokov tinha horror de Freud (em suas palavras, o “charlatão de Viena”), acho melhor ir ficando por aqui.