Quatro crises por uma

Colunistas

24.08.16

O julgamento que começa nesta quinta-feira no Senado é resultado de um processo de impeachment, cuja legitimidade é questionada pelo uso de outra palavra, golpe. Como aconteceu em 1964, quando a polaridade era entre golpe militar ou revolução redentora, hoje a política se faz em torno da disputa por significantes. Participam deste discurso termos como crise, pacto e misoginia, evocado pelos movimentos feministas para mostrar o quanto há de discriminação contra uma mulher no poder. O problema das palavras é o que elas dizem das coisas e o que eventualmente elas omitem. Crise, por exemplo, por gasta, se esvaziou de seu sentido de tal modo que me parece necessário qualificá-la.

À primeira vista, os motivos que levaram milhares de pessoas às ruas em 2013 – importante lembrar que estávamos no final do primeiro mandato da presidente Dilma – foi por muitos, inclusive por mim, entendidos apenas como uma crise de representação, tão característica das democracias parlamentares contemporâneas. Hoje, passados a Copa do Mundo e as Olimpíadas – os dois grandes mega-eventos que estavam apenas no nosso horizonte em 2013 – gostaria de arriscar outra hipótese.

A crise que nos trouxe até o julgamento de amanhã é também de soberania. Para isso, me alinho ao diagnóstico do filósofo Carl Schmitt: soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção. Em 2014 e 2016, na Copa e nas Olimpíadas, os estados de exceção foram comandados por instituições globais que se colocaram acima do poder do estado. Quando Dilma iniciou seu segundo mandato, seu governo já estava pautado pela FIFA e pelo COI. Todos nós lembramos dos cartazes que diziam “Queremos saúde padrão FIFA” ou “Queremos educação padrão FIFA”, que hoje penso que podermos ler como “queremos uma presidência que não se curve aos interesses da FIFA”.

Somar a crise de representação com a de soberania me permite nomear fenômenos como  a fraqueza do segundo mandato do governo Dilma Rousseff por conta do grande número de compromissos assumidos em função da acirrada disputa eleitoral, a perda de soberania em relação aos projetos nacionais em função dos compromissos assumidos com a FIFA e com o COI, e combinar a misoginia explícita nas votações da Câmara e do Senado com a impossibilidade, presente desde o início do primeiro mandato, de aceitar uma governante mulher. Lembro da presidenta Dilma sendo xingada na cerimônia de abertura da Copa do Mundo, ela ali submetida ao poder da FIFA, enquanto a Força Nacional submetia os manifestantes à violência policial. Servil aos fortes, violenta com os fracos, Dilma entrou numa crise de governabilidade que pode ser entendida como resultado da soma dessas duas crises.

Aqui, gostaria de trazer à cena mais uma palavra, pacto. Este significante faz parte da nossa história desde que o Pacto Colonial estabeleceu o monopólio das relações comerciais entre Brasil e Portugal. Mais recentemente, no fim da campanha das Diretas-Já,  o clamor das ruas foi abafado pelo pacto que deu origem à Nova República, tendo o PMDB de Ulysses Guimarães como fiador. A retirada de Dilma da presidência da República também foi resultado de um pacto político reunindo todos aqueles que, independentemente de divergências internas, acharam que era a hora de tirar a presidenta do poder em nome de uma aposta em outra crise, a de legitimidade.

O discurso da crise de legitimidade partiu das forças políticas derrotadas nas urnas de 2012, apontando a pequena diferença de votos entre os candidatos que disputaram o segundo turno e a insistência no termo “estelionato eleitoral”. A mim parece necessário abandonar de vez essa percepção e pensar que todas as votações que fizeram com que o processo chegasse à votação de amanhã dependeram justamente de se afirmarem como legítimas – daí a insistência daqueles que defendem o impeachment como um processo cuja legalidade estaria garantida pelo cumprimento de todos os ritos formais – para que o governo interino possa apagar, desde a sua origem, aquilo que nunca teve: a legitimidade que, num movimento especular, acusa a presidenta eleita de não ter.

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