O Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro promove entre 7 e 13 de junho o Ciclo Ken Loach, com a exibição de cinco filmes do aclamado diretor britânico, dentre eles A parte dos anjos.
No olhar atento e sorridente do diretor diante da cena, ele então como primeiro espectador do filme que está dirigindo, uma imagem-síntese de The angel’s share (ao pé da letra A parte dos anjos, título com que se exibe entre nós; também poderíamos usar como título A dose do santo). Na foto, uma perfeita sinopse do filme. Não um resumo da história, mas uma síntese do modo de contá-la. Não uma apresentação do personagem do filme, mas uma projeção antecipada do espectador a quem ele se dirige em primeiro lugar. No filme como um todo, um retrato do cinema de Ken Loach.
A parte dos anjos, como Meu nome é Joe, Apenas um beijo, À procura de Eric (para citar apenas os filmes que compõem a mostra do Instituto Moreira Salles) e qualquer outro filme do diretor, conta com intérpretes não profissionais. Paul Brannigan, que faz o papel de Robbie, por exemplo, não é ator: trabalha num projeto de combate à violência num subúrbio de Glasgow. Não profissionais e um bom espaço para a livre invenção dos diálogos e gestos dos personagens no instante da cena, que, a rigor, ocorre uma única vez, qual ação viva e real, sem interferência da câmera, sem interrupções para a mudança de ponto de vista, sem novas tomadas para diferentes reações dos atores. Filma-se como num documentário. Não há lugar para repetições. O trabalho se apoia numa boa dose de improvisação, como se o narrador estivesse diante de fatos não conhecidos. Nada muito ensaiado, e quase sem tempo para pensar registra-se um fragmento da ação, pois a cena se esconde e foge em vez de se organizar para a objetiva da câmera. A ação como coisa viva e imprevisível, e o primeiro a se surpreender e se divertir com ela é o próprio realizador, ali, meio dentro e meio fora, quieto num canto, mão no queixo, sorridente, como se fosse não o diretor, mas um espectador dirigido pelo filme.
Desse modo, apoiado sempre no mesmo esquema de trabalho, Loach continua a se deixar surpreender durante a realização de seus filmes (e com eles na tela, a surpreender o espectador) e a manter o entusiasmo jovem da descoberta depois de 47 filmes em 46 anos de cinema – sua primeira realização, A lágrima secreta (Poor cow), é de 1967. Na foto, portanto, um chamado para o espectador comportar-se como o diretor. A parte dos anjos solicita do espectador uma alegre cumplicidade com sorriso do espectador primeiro dessa anedota crítica da crise do desemprego.
O que se discute é uma questão dramática – o desemprego, os jovens ingleses condenados à impossibilidade de um emprego fixo e estável – mas o drama se discute em tom de comédia ligeira. Jovens sem emprego roubam garrafas de um uísque muito antigo e raro para vender a um colecionador por um preço especial: o comprador deve conseguir trabalho regular para o ladrão. A atração maior não está neste episódio, narrado da metade para o fim do filme, mas nas aventuras contadas na primeira metade, o dia a dia de personagens condenados a prestar serviços comunitários depois de pequenos (ou nem tanto) delitos. “Quais os efeitos da falta de perspectiva de trabalho na autoestima dos jovens?” perguntam-se o diretor e seu roteirista, Paul Laverty. “Apresentamos não uma resposta, mas uma imagem da questão na história de uma inteligência desperdiçada e do esforço para um recomeço. Fizemos uma fusão de duas situações dramáticas fortes. O jovem sem perspectiva de trabalho é mostrado no instante em que, com o nascimento de seu primeiro filho, se vê obrigado a fazer planos para o futuro”.
Para os jovens sem trabalho de hoje, o futuro acabou. “Nos meus filmes anteriores os personagens jovens tinham um projeto, queriam fazer algo preciso, lutavam obrigados a um enorme esforço para sobreviver em meio a ruínas e concretizar seus sonhos. Agora lidamos com personagens impedidos até mesmo de sonhar um projeto. Não quero dizer que conseguir um emprego seja um remédio para todos os males, mas um trabalho regular solucionaria grande parte do problema de toda a população, não só dos jovens. Qualquer trabalho, o que parece impossível hoje. E a pessoa desempregada deixa de existir socialmente, perde a identidade, passa a ser vigiada como um criminoso em potencial. Nesse contexto, como criar uma autoestima entre os jovens?”.
A estratégia de Robbie e seus amigos para conseguir um emprego e recuperar um lugar na sociedade, por sua ironia radical e simples, traz à memória a solução adotada certo dia por um outro desempregado de Glasgow, Joe Kavanagh, em Meu nome é Joe, para melhorar melhorar o rendimento de seu fraquíssimo de seu time de futebol no campeonato dos que estão sem trabalho. Pega numa loja de material esportivo camisas da seleção brasileira de 1970 e a equipe entra em campo supermotivada, com a camisa número 10 de Pelé, a 11 de Rivelino, a 7 de Jairzinho, para se impor aos adversários. O olhar jovem de Loach acompanha Robbie e Joe com igual cumplicidade, solidário com a luta diária do trabalhador sem trabalho para recuperar a autoestima.